Notas Críticas por Tito Lívio

O crítico Tito Lívio fala hoje de "Hamlet(a)" no Teatro na Comuna, "Zoom" no Teatro da Trindade e "A Criada Zerlina" no Centro Cultural de Belém. 



Em "Hamlet(a), numa inusitada, e bem conseguida encenação de Hugo Franco,também actor da Comuna, que se está a revelar um excelente encenador e director de actores. E digo inusitada porque aqui todas as personagens desta obra-prima de Shakespeare são desempenhadas por mulheres, sete magníficas actrizes que se dedicaram, de alma e coração, a esta tarefa.

E não é de estranhar esta opção já que, no tempo do seu autor, as mulheres estavam proibidas de actuar, sendo os papéis femininos interpretados por homens. E, já no final do século XIX, a grande Sarah Bernhardt desempenhou, com brilhantismo o seu "Hamlet" e, mais recentemente Maxine Peake o fez também, em Manchester (Inglaterra), tendo sido muito bem acolhida pela crítica.

Depois os temas de Hamlet são ainda bem actuais: a amizade, a vingança, o incesto, a loucura causada por traumas emocionais, o fratricídio, traição, assassinato e a usurpação do trono/poder, o dilema do filho que quer vingar duramente o crime de que o pai foi vítima e a perplexidade de um jovem expressa naquela que é a tirada mais famosa de Shakespeare: esse monólogo difícil para qualquer intérprete : "Ser ou não ser eis a questão…"

Num cenário nu, despido de objectos de cena, as luzes marcam espaços, definem atmosferas, têm um papel de constante comentário da accão porque também o espírito de um Hamlet perturbado hesita entre a razão e as sombras em que irá gradualmente mergulhando até ser vítima dos seus conluios. E certas cenas estão mesmo muito bem resolvidas como a da actuação dos actores na corte da Dinamarca que é narrada em cena e que dará origem a um intervalo de dez minutos ou ainda a do suicídio de Ofélia. Também está muito bem feita a Dramaturgia com a escolha das cenas fundamentais deste tão rico texto que, devido às significativas marcações, fica muito mais próximo sobretudo das camadas mais jovens, dando-lhe um ar mais fresco e actual.

Recordo que este "Hamlet(a) vai contra qualquer discriminação de género porque os sentimentos que desencadeia e contém são comuns a homens e mulheres e deve imenso ao magnífico trabalho das suas sete intérpretes: Maria Ana Filipe (Hamlet), Margarida Cardeal (Cláudio), Diana Costa e Silva (Polónio), Mónica Garnel (Horácio), Tânia Alves (Laertes), Lia Carvalho (Gertrudes) e Custódia Gallego (Ofélia) com uma das melhores cenas de loucura que tenho visto em cima do palco.

Apenas um óbice de fácil emenda: quando as intérpretes se colocam no fundo do palco ou em certas zonas laterais(esquerda/baixa) as suas falas não se percebem na totalidade e nada se pode perder num texto tão rico como este. E como é actual esta peça porque se "algo está podre no Reino da Dinamarca" tal se pode estender a muitos países deste nosso mundo que habitamos e, face a tantos ditadores, aqui se escuta sobre Cláudio, o rei usurpador, na boca de Hamlet:" Os governantes loucos, na sua caminhada, devem ser vigiados".

Nada de mais contemporâneo como aliás todo o teatro de Shakespeare. 5 estrelas e a não perder e em cena, na Comuna, apenas até 10 de Março. Parabéns a todos e o nosso Teatro está muito bem entregue a alguns jovens intérpretes e encenadores.

“Hamlet(a)”
Autor: William Shakespeare
Encenação: Hugo Franco
Tradução: Sophia de Mello Breyner Andresen
Com: Maria Ana Filipe, Margarida Cardeal, Diana Costa e Silva, Mónica Garnel, Tânia Alves, Lia Carvalho e Custódia Gallego
Assistência de Encenação: Miguel Sermão
Apoio à Dramaturgia: Cristina Buero
Cenário: Hugo Franco \Renato Godinho 
Desenho de Luz: Paulo Graça
Figurinos Rui Alexandre
Coreografia Alexandre Tavares

Quartas e quintas preço único 5 euros
Sexta a Domingo preço 10 euros
Reservas 217221770
teatrocomuna@sapo.pt



Adorei a forte peça "Zoom", em cena na Sala Carmen Dolores e no Teatro da Trindade, da autoria de Donald Margulies e com uma encenação e direcção de actores muito boa de Diogo Infante.

É um texto bem actual porque se centra à volta de um casal de jornalistas no cenário das guerras do Médio Oriente, penso que Iraque, e em que ela (Sarah), fotógrafa profissional, vem ferida de um acidente com uma mina e ele (James) traz consigo, e ao fim de tantos anos de uma profissão esgotante e altamente perigosa, se encontra num estado de stress pós-traumático. No seu loft, regressados a casa, vai-se colocar a questão se param por ali, deixando os traumas de guerra para trás, ou se podem, e querem, viver uma vida normal, comum a tantos casais, dilema que lhes é despertado pela presença e interrogações de Mandy, a jovem mulher do seu editor Steve.

Ambos trabalham com uma enorme militância para mostrar ao mundo e denunciar tantos crimes de guerra, o que sofrem as populações, sobretudo mulheres e crianças, os mais vulneráveis. Porque ser jornalista no cenário de tantos conflitos armados é uma das mais arriscadas e perigosas profissões com tantos profissionais mortos, aprisionados ou raptados. Steve casou com uma mulher muito mais jovem, cansado que estava da anterior, levantando ainda o problema de muitos intelectuais, mesmo de esquerda, que não aguentam mulheres inteligentes e que lhes dão luta. Mandy tem sonhos simples e comuns: quer ser boa esposa e óptima mãe e tal agrada sobremaneira a Steve. Dá-lhe a tranquilidade que o primeiro casamento não lhe ofereceu, a possibilidade de uma rotina pacífica, de uma vida familiar exemplar pois esta mulher não lhe levanta quaisquer problemas.

O exemplo do casal Steve e Mandy, e muito por responsabilidade desta, virá despertar a vontade latente, há muito, de James se consagrar a uma vida idêntica, uma existência pacata e sem riscos, exausto que está numa profissão que lhe causou tantos traumas e tanto o afectou psicologicamente. Pôe-se agora um problema instante de escolha para Sarah: aderir aos desejos de estabilidade do seu companheiro de vida e de teatros de guerra ou regressar, como espírito de missão, ao seu arriscado trabalho que encara como uma tarefa de solidariedade pelos povos afectados e assim romper a sua união com James?

O grande mérito de Donald Margulies é não julgar as suas personagens, colocando-nos apenas pelas respectivas opções de vida, todos em busca de uma estabilidade e paz de espírito essenciais para três deles, unindo-os a todos uma enorme amizade e cumplicidade e frente a escolhas de vida essenciais. Sandra Faleiro, com umas canadianas com que teve aprender a se mexer, tarefa nada fácil, João Reis, Sara Matos, uma boa revelação no palco (não vejo telenovelas) e Virgílio Castelo dão vida e credibilidade a personagens difíceis e multifacetadas num conjunto aliás brilhante.

Recomendo pois "Zoom", em cena até 31 de Março no Teatro da Trindade. 4 estrelas e a não perder.

"Zoom"
Texto Donald Margulies
Tradução e Encenação Diogo Infante
Com Sandra Faleiro, João Reis, Sara Matos e Virgílio Castelo
Cenografia Catarina Amaro
Sonoplastia Rui Rebelo
Desenho de Luz Tânia Neto
Produção Teatro da Trindade INATEL

Tel: 213 420 000
E-mail: bilheteira.trindade@inatel.pt

Horário
terça a sábado: 14:00 às 20:00
domingo: 14:00 às 18:00
Dias de espetáculo até 30 minutos após o início
segunda: encerrada
Bilheteira online
https://teatrodatrindade-inatel.bol.pt/

Até 31 Março
Quarta a Sábado - 21:00
Domingo - 16:30
Teatro da Trindade | Sala Carmen Dolores
Conversa com o público
10 Março / Domingo,  após o espetáculo



Na excelente, se não prodigiosa Zerlina, da peça de Herman Broch do mesmo nome, de Luísa Cruz no CCB.
Texto longo e difícil, tinha sido, na encenação de João Perry no D. Maria II, um dos melhores momentos de palco de Eunice Muñoz.

Pois Luísa Cruz, com a colaboração do realizador João Botelho, sua estreia em Teatro, conseguiram uma versão e abordagens, mais crua e distanciada, por vezes quase brechtiana, nos constantes cortes do texto representados por uma voz, em off, gravada, que é a da consciência da própria Zerlina, as luzes brancas e cruas, uma música que serve de atmosfera à acção e onde está sempre presente a diferença e distância de classes já que estamos dentro de uma aristocracia, arruinada, pode ser, em que a serva, a criada, vive e envelhece em casa dos patrões e é pasto do desejo sexual de um grande amigo e amante da baronesa, a senhora da casa, de quem fez uma filha bastarda. E, não por mero acaso, o marido legítimo é um juiz que tenta, a todo o custo, salvar as aparências quando as julga ameaçadas, acto que Zerlina considera uma pura decisão ética.

Mas, no dia-a-dia, a serva, mesmo quando se entrega, não o faz pela paixão: "Eu não o amei, tive-o", diz, e foi ela sempre que conduziu o jogo, tornando-se assim de serva/objecto em sujeito da sua vida, relações sexuais e destino. Ou, como disse José Ribeiro da Fonte, é um " ser erótico" que se transformou em "ser ético" pois, pelas suas mãos e vingança calculada, se faz, se restitui, a devida justiça.

O que menos gostei foi destes móveis anódinos e banais de Pedro Cabrita Reis, excepto na sugestão que dão de persianas ou também grades de prisão, das luzes cujo quadro, se reflecte no final, a mesma intensidade forte que nos cega, e a terminar, coincidente com os focos de novo voltados para a plateia, uma música dramática que permite o desaparecimento de Zerlina até ao black out final.

O figurino moderno vermelho de Zerlina leva-nos para o sexo, vingança, sangue e é uma muito boa escolha, simbólica e de grande significado. A tradução de Susana Muñoz é exemplar. mas este texto vale sobretudo pela fabulosa interpretação de Luísa Cruz, na intensidade contida que dá à sua narrativa e discurso num espaço intimista em que estamos a seu lado, cúmplices também, testemunhas próximas do que diz como se todos fossemos o A para quem ela fale e interpela no único grito que dá no final, em crescendo dramático, utilizando o rosto, o corpo, os movimentos, o peso da idade, sempre sem arrobos, num registo natural mas nunca cedendo à tentação de um naturalismo ou sequer realismo. Assim ela não interpreta Zerlina, ela mostra-a nos seus raciocínios, na sua pensada vingança, tomando como sujeito desta, a bastarda a quem educa para o ódio e o sentimento de culpa. Sinistro mas justo desforço ético já que de vítima se transforma em carrasco.

A sua voz vai desde a ironia intensa com que lê a sentimental carta de amor da baronesa à descrição, corpo pleno de cio, dos seus debates amorosos com o amante que serve apenas para satisfazer os seus desejos eróticos e que comanda, num tom de crítica e assunção da sua personalidade, da sua inteligência e da ordem que deve ser restabelecida mas agora aquela em que é a dona e senhora dos acontecimentos. E de que os outros, os que a humilharam e dela se serviram, passam a meros fantoches por si manipulados, numa acção ética ao mesmo tempo vingança.
de uma mulher que toma o destino nas suas mãos. E o corte de texto desnecessário do final resultou em pleno já que mais nada haveria de importante haveria já a acrescentar.

Parabéns, minha querida aluna do Curso de Teatro, que bom tem sido ver-te crescer e tornares-te uma actriz de referência no nosso panorama teatral e seres tão simples e acolhedora, facilitando-me e esclarecendo-me ,inclusive, nesta crítica em que me ajudaste a dar o seu a seu dono.

Hoje é o último espectáculo desta "Zerlina" prodigiosa, não percam, às 21H00 na Sala de Ensaio do CCB. A não perder, Teatro obrigatório e 5 estrelas. Tenho orgulho de teres sido minha aluna. Parabéns e felicidades para um 2019 e 2020, como me contaste, cheio Teatro e Televisão, de coisas boas.

"A Criada Zerlina"
João Botelho encenação
Pedro Cabrita Reis cenografia e figurino
Nuno Meira desenho de luz
Sérgio Milhano/Pontozurca sonoplastia
Nuno Pratas produção executiva
Luísa Cruz interpretação

6 Março às 21h
Sala de Ensaio
M/12
Duração aprox. 75 min

Critica por Tito Lívio


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