Listopad tinha 95 anos e encenou cerca de 60 peças de teatro. Deixa 50 obras de prosa, poesia e ensaio, em checo, português e francês. Vivia em Portugal desde a década de 50.
O escritor, professor e encenador checo Jorge Listopad, radicado em Portugal há seis décadas, morreu no domingo aos 95 anos, em Lisboa, disse à Lusa fonte da Escola Superior de Teatro e Cinema.
Poeta, cronista e encenador, Jorge Listopad nasceu em 1921, em Praga, onde se doutorou em Filosofia, mas vivia em Portugal desde os anos 1950 e aqui fez carreira na literatura, nos jornais e na televisão, embora a sua grande paixão sempre assumida fosse o teatro. As suas mais recentes produções foram A Instalação do Medo, em 2014, no Teatro Municipal São Luiz, e Meu Tio Jaguar, em 2012, no Teatro Nacional D. Maria II. Encenar, dizia, era a sua maneira de escrever para teatro, já que ser dramaturgo foi coisa que nunca lhe interessou.
"Uma imaginação prodigiosa"
“Há [no teatro] uma sedução erótica, que sempre se quer”, disse Listopad ao jornal i, em 2012. “É uma tentação. No teatro o actor aquece a sua personalidade, o seu interior. Esse aquecimento passa depois para os outros.”
É nesta mesma entrevista, como em tantas outras que deu ao longo da vida, sobretudo ao Jornal de Letras (JL), de que foi colaborador regular, e ao Jornal de Notícias (JN), que explica como acabou um checo radicado em Portugal a chamar-se Jorge: “Jorge é o mesmo que Jíri [seu nome no BI checo]. Listopad é ‘Novembro’. Nasci em Novembro. Agora o Jorge tem a mesma raiz, estão todos ligados à terra; são lavradores. Portanto, sou o lavrador de Novembro.”
Um “lavrador” que nasceu num meio privilegiado e numa casa em que a cultura tinha sempre lugar à mesa, como explica numa breve autobiografia (Na escada rolante) que assinou no JL quando completara já 82 anos. Aí fala dos seus anos de infância e juventude – “quando nasci (em Praga) não suspeitava que era uma das mais belas cidades do mundo” –, da sua casa “elegante” da “burguesia instalada”, do bairro onde vivia ouvindo jazz “contra a solidão da puberdade”, da primeira paixão, Helena, “morta com 17 anos, em trânsito para o campo de concentração, em 1940”, da sua própria fuga às perseguições nazis e da chegada a Paris, onde passou a dar-se com a “high-society da esquerda” mal começou a trabalhar como chefe de redacção do semanário Paralèlle 50, que tinha na sua lista de colaboradores escritores como Roger Vailland e Claude Roy, e sociólogos e filósofos como Edgar Morin.
Foi em Paris, aliás, que se cruzou também com outras personalidades marcantes do século XX, nas artes, na literatura e na política – Jean-Paul Sartre, Albert Camus, Marguerite Duras, Jean Cocteau, Tristan Tzara (a quem pagava cafés), Samuel Beckett, Paul Éluard, André Malraux, Peter Ustinov, François Miterrand, Václav Havel (os pais de ambos eram amigos), Alexander Dubcek (que nasceu no mesmo dia).
"Eternamente curioso"
Jorge Listopad estava na capital francesa em 1948, quando se deu o golpe de Estado em Praga que levou os comunistas ao poder e instaurou uma ditadura de quatro décadas. Era funcionário da embaixada da Checoslováquia em Paris e decidiu que não voltaria tão cedo ao seu país.
A política, diria numa entrevista ao Jornal de Letras em 1992, nunca lhe interessara, apesar de se afirmar de esquerda com convicção. Era a liberdade que importava e fora em nome dela que se juntara à resistência contra Hitler, algo que fizera dele um herói sem que desse por isso, e um herói com direito a nome de rua e tudo: “Quando começou a Revolução de Veludo [em 1989, pondo fim ao governo comunista da Checoslováquia] lembraram-se de mim numa pequena cidade de província onde havia o quartel-general da Resistência durante a guerra, e porque pensaram que eu já estava morto, longe no estrangeiro, deram o meu nome a uma rua, por sinal bastante feia; ainda lá está. Fui enterrado vivo, herói duas vezes.”
Frequentando os círculos artísticos e intelectuais, em parte graças à sua actividade na imprensa, Jorge Listopad fez também em Paris as suas primeiras experiências em televisão, que lhe haveriam de ser muito úteis à chegada a Portugal.
Foi também em França que teve os seus primeiros contactos com o português escrito, que passou a dominar quase como a sua língua-mãe, o francês e o alemão. Começou com um peso-pesado da literatura nacional – Eça de Queirós e o seu O Crime do Padre Amaro, escrevia a agência Lusa quando, em 2002 o escritor recebeu o título honoris causa pela Universidade Carolina, em Praga – e nunca mais parou de ler.
Uma mulher por quem se apaixonou em Paris fê-lo trocar as margens do Sena pelas do Douro. Chamava-se Julieta e tinha os olhos azuis como ele, gostava de lembrar. “Sou amigo de detalhes, de microcosmos, gosto dos pequenos países, há muito mais para ver. Portugal, por exemplo, Porto, quero dizer. Não recusei a primeira chávena de lúcia-lima, na rua da Vilarinha”, escreve em Na escada rolante.
Praga, Paris, Porto
Depois de viver dez anos em Paris, onde chegou clandestinamente levando na mala apenas cinco dólares, uma camisa lavada e dois livros – a Bíblia e O Valente Soldado Svejk, de Jaroslav Hasek, livro editado pelo seu avô paterno, que começou a carreira como tipógrafo –, Listopad mudou-se para o Porto, onde foi um dos fundadores da RTP Porto, trabalhou como realizador de televisão e começou a colaborar com a imprensa portuguesa, assinando crítica de teatro, crónica e ensaio.
Foi no Porto que conviveu com a escritora Agustina Bessa-Luís, a poetisa Sophia de Mello Breyner, o cineasta António Reis e o poeta Eugénio de Andrade, que lhe corrigia os textos e de quem se tornou amigo.
Mais tarde mudou-se para Lisboa para dar aulas no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, a convite do antropólogo Jorge Dias. Na capital presidiu à Comissão Instaladora da Escola Superior de Teatro e Cinema, co-dirigiu o Teatro Nacional D. Maria II e, em 1981, fundou e liderou o Grupo de Teatro da Universidade Técnica de Lisboa.
Da lista de 60 peças que encenou fazem parte dezenas de autores de referência, nacionais e internacionais. Destaquem-se, por exemplo, Diário de um Louco, de Gógol, O Porteiro, de Pinter, Huis Clos, de Sartre, Dança da Morte, de Strindberg, A Vida é um Sonho, de Calderón de la Barca, A Forja, de Alves Redol, e Macbeth, de Shakespeare. No que escreveu, para além das crónicas, críticas e ensaios assinados na imprensa (Expresso, Comércio do Porto, Diário de Notícias, Diário de Lisboa e Jornal de Letras), encontram-se obras como Tristão ou a Traição de um Intelectual (1960), Secos e Molhados (1982), Primeiro Testamento (1985), Biografia de Cristal (1992), Todos prá Mesa (2006) e Deslizamento (2009), embora a mais citada por ele em entrevista seja a autobiografia eternamente em curso a que deu o nome Da Boémia à Finisterra.
Costumava dizer que esta obra viria já depois dele, depois da sua morte, e se algum jornal lhe perguntava – como o JL em 1992 – por que razão não a editava, respondia: “Tenho medo, como se tem medo de fazer o testamento. Acho que todos morremos desconhecidos. E eu dupla, multiplamente.”
Em Portugal, o crítico e encenador teve um percurso premiado, nomeadamente pela Associação Portuguesa de Críticos de Teatro e pela Presidência da República, que lhe atribuiu o grau de Grande-Oficial da Ordem do Infante D. Henrique. Reagindo esta tarde à notícia da sua morte, que "lamentou profundamente", o ministro da Cultura Luís Filipe Castro Mendes recordou a "vasta erudição" e o "sentido de humor muito subtil, com uma ironia por vezes desconcertante" de Jorge Listopad e sublinhou o seu papel na renovação do teatro em Portugal durante a segunda metade do século XX: "Profundo conhecedor da dramaturgia portuguesa, Jorge Listopad encenou a maioria do repertório clássico português, destacando-se A Castro, de António Ferreira, ou Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett [espectáculo em que revelou a actriz Alexandra Lencastre], entre muitas outras peças (...). Dotado de uma notável consciência cénica, destacou-se também a dirigir actores, fazendo sobressair as suas melhores qualidades em cena", refere o ministro em comunicado.
Fora do país, Listopad foi ainda agraciado com a Medalha Militar Checoslovaca da Resistência (1945) e nomeado Companheiro do Marechal Tito (1946), tendo sido distinguido também com o Prémio da Academia de Artes e Ciências de Praga, pelo conjunto da sua obra. Recebeu igualmente o 1.º Prémio do Conselho Cultural de Estocolmo (1952), o 1.º Prémio da Rádio Europa Livre de Poesia (1954), a Medalha de Ouro do Prémio Europeu Franz Kafka (2000), a Medalha de Mérito Nacional da República Checa (2001), o Prémio Gratias Agit (Praga, 2004), o Prémio Jaroslav Seifert (Praga, 2007) e é doutor honoris causa pela Universidade de Brno (República Checa, 1992) e pela Universidade Carolina, de Praga.
“Não tenho verdadeira autobiografia para além daquela parsemeada pelo que escrevo, enceno e até ensino”, disse ainda ao JL. “Mas tudo o que está de um ou outro modo vivo muda, murcha, ressuscita, transforma-se, desloca o objectivo, escreve na penúltima página e, se for preciso para a paz da sua alma, tentaria compor a epopeia da sua vida na folha de um guardanapo.”
O velório de Jorge Listopad terá lugar esta quarta-feira, a partir das 18h, na capela do Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa, de onde o funeral sairá às 14h45 de quinta-feira para o cemitério dos Prazeres.
Texto do Público com a Lusa
Em sua evocação, fica um texto de Eugénia Vasques de Outubro de 2006, quando apresentava Jorge Listopad na Abertura Solene do Ano Lectivo da ESTC
Apresentação de JORGE LISTOPAD
(Abertura Solene do Ano Lectivo ESTC 2006-7
25 de Outubro, 2006, 17 horas, Grande Auditório)
1. O Professor Jorge Listopad – na realidade Jiri Synek a quem foi concedida a nacionalidade portuguesa a 28/8/1963 --, poeta, tradutor de poetas (como Fernando Pessoa), escritor, cronista, realizador de televisão, professor e encenador, chegou ao Conservatório Nacional em meados dos anos 70. Foi nosso professor da cadeira de História do Espectáculo – cadeira do plano curricular do 2º ano, em cuja leccionação sucedeu a Teresa Motta (irmã do João Mota, nessa altura docente da Escola de Educação pela Arte, sita na Rua dos Caetanos).
Como consta do seu processo docente, concorreu, igualmente, à leccionação da cadeira de Formação e Direcção de Actores para além de outras áreas de especialização como Dramaturgia e Estética e História das Artes que já não me recordo se ainda nos chegou a ministrar ou ao curso diurno de Actores, mas sei, em contrapartida, que nos dirigiu, aos nocturnos, no Atelier de Interpretação do 3º ano do Curso de Formação de Actores -Encenadores -- que era o novo nome que obtivera o nosso Curso após se ter chamado, mais revolucionariamente, Curso de Animadores Teatrais (que era o que eu tinha demandado no 1º ano) e depois Curso de Formação de Actores/Animadores (2º ano). Foi também nosso professor de Interpretação no 4º e último ano do Curso.
Recordo o espectáculo Azul Como Laranja (3º ano) que constituiu, no Pavilhão da Rua dos Caetanos, a nossa imersão iniciática numa estética surrealizante e orgânica a que não estávamos habituados e recordo, igualmente, o frustrado projecto de Andorra, de Max Frisch – que Listopad encenava naquele momento no Novo Grupo/Teatro Aberto --, que não chegámos a apresentar publicamente no final do Curso, para meu enorme desgosto, embora o tenhamos ensaiado por dentro do mês de Agosto e o tenhamos estudado afanosamente – com o Rogério de Carvalho como nosso colega externo – como se comprova pelo intenso processo dramatúrgico que elaborámos em colectivo e cujos documentos guardo religiosamente.
Recordo, ainda, que tentei – sem sucesso, que o professor não mo permitiu! -- ser Danton, na peça A Morte de Danton de Büchner, mas também este projecto não teria realização já não me lembro bem porquê.
A história desses anos, ainda de festa, no Conservatório – bem como a história de tantos outros períodos altos ou baixos da instituição --, encontra-se por fazer. Mas posso dizer que, nessa altura, o curso nocturno, composto por professores de boa vontade (como Natália de Matos, Carlos Porto, Margarida de Abreu, Osório Mateus, Eurico Lisboa, Glória de Matos, Luís de Matos e alguns outros) e por estudantes-trabalhadores que chegavam às aulas por volta das 18 horas e saiam à meia-noite, era já, naquele início da década de oitenta, um curso “enteado” do Ministério, tendo sido, aliás, abolido, pouco depois, pelas habituais razões de economia e gestão.
2. Mas o que eu recordo bem, para além dos fantásticos exercícios de autoconfiança, de desinibição e de mergulho no subconsciente para melhor ser consciente de si e dos outros, é do processo de iniciação à análise estética a que Jorge Listopad submeteu aqueles e aquelas mais sedentos de mundo e de cultura.
Sem nunca nos assustar com nomes muito estranhos nem com bibliografias desconhecidas – o que não era prática na nossa Escola, aliás, antes dos anos 80 --, introduziu-nos na prática de uma análise do texto – lembro-me, em particular, da análise apaixonada que fez da Sibila de Agustina que determinou o meu modo de ler esta autora, ou de Huis Clos de Sartre, que acabara de estrear -- e da análise da cena com ferramentas semiológicas que não se preocupava em contextualizar teoricamente mas em utilizar de um modo que me soava quase… a mágico.
E a verdade é que, só anos depois, eu percebi que o que realmente me marcara para sempre – a tal “marca de Zorro” de que já lhe falei em tempos – era a disciplina da análise dos signos artísticos através de elementos da Semiologia ou da Antropologia que viriam a ser ferramentas que tentei introduzir, de um modo menos eufemístico do que o próprio Mestre, seu praticante diplomático, no exercício da crítica teatral jornalística regular a partir dos anos 80, desviando-me, assim, de uma mais habitual análise dramatúrgica ou tão só de texto literário. Jorge Listopad foi um divulgador destas disciplinas, quer a nível académico quer a nível artístico, que aplicava às Ciências Humanas (línguas e literaturas, etc.) e às artes da Imagem, de que era, não por acaso, igualmente praticante profissional.
3. Jorge Listopad deixou igualmente a sua marca na passagem do ensino artístico do Conservatório ao subsistema do ensino superior politécnico (1983) e determinou a construção de raiz deste edifício novo para as escolas irmanadas de Teatro e Cinema na cidade da Amadora.
Mas o que realmente identificou a sua posição face ao ensino do teatro no nosso país – que adoptou nos anos 50 (adquirindo a nacionalidade portuguesa a 28/8/1963) depois de sair da Checoslováquia e de ter vivido em França – foi a pragmática defesa do ecletismo.
Em 1989, defendia assim este modo de ensinar arte:
«As escolas artísticas não são, por definição, de um único estilo, de um único saber, de uma única técnica, mas são escolas ecléticas; além de ecléticas com toda a dificuldade que o termo oferece, as escolas artísticas são instituições vocacionais. Em muita matéria deslocam o centro de ensino para os ateliers ou para as oficinas, individuais ou colectivas onde até o ensino do conhecimento teórico e cultural passa como parte da praxis interdisciplinar e, em alguns casos, transdisciplinar.»
Depois de identificar as necessidades para este modo de ensinar os novos praticantes, Jorge Listopad definia, ao seu estilo, paradoxal e oximorístico, o referido ensino: “Prática positiva ou negativa, podia alguém perguntar. O ensino artístico acredita na dialéctica fecunda do sime do não. O objecto último deste ensino, a arte, o seu meio, a técnica, o seu utensílio, a pedagogia, alimenta-se desse modo."
4. Para terminar, lembrarei ainda que Jorge Listopad foi condecorado “Escritor do Ano” em 2003, “Homem do Ano” em 2004 e eu, agora, em nome da Escola Superior de Teatro e Cinema, aqui lhe aponho o epíteto ficcional de “Professor do Ano” em 2006!
Eugénia Vasques
Lisboa, 25 de Outubro de 2006.
Lisboa, 2 de Outubro de 2017
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