Sem poder se apresentar, grupos de teatro ensaiam peças com aplicativos de encontros virtuais

BRASIL

No dia 12 de março, o elenco de “Pá de cal” fez sua estreia no Teatro 2 do Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio, dando início a uma temporada que iria até 20 de maio, seguindo para Belo Horizonte logo depois. Os planos duraram até a sessão seguinte. No dia 13, uma sexta-feira, o governador Wilson Witzel decretou o fechamento de todos os teatros (e cinemas, casas de shows e outros equipamentos culturais do estado) para conter a propagação da Covid-19.

Após a frustração inicial, e ciente da necessidade de manter o isolamento social, a equipe decidiu retomar a rotina. Ou o que de mais próximo da rotina foi possível inventar sob quarentena. Três vezes por semana, o diretor Paulo Verlings, o autor Jô Bilac e os atores ensaiam e estudam o texto, juntos, via Zoom. Tem sido assim com vários outros elencos e companhias de teatro pelo país. As plataformas de encontros virtuais viraram o palco para manter viva uma arte que é essencialmente presencial.

— Nossas primeiras reuniões virtuais foram para desabafar, por estrear e não poder seguir com a temporada. Claro que a questão de saúde pública é prioridade, mas também precisamos descobrir formas de lidar com esse sentimento de impotência — diz Verlings. — Há umas duas semanas retomamos os ensaios pelo Zoom, é uma forma de manter o texto vivo, ao mesmo tempo em que nos faz pensar para além deste momento.

Em São Paulo, Reynaldo Gianechinni e Letícia Spiller se preparavam para estrear no Teatro Procópio Ferreira a versão teatral de “Brilho eterno de uma mente sem lembranças”. Adaptação do filme de Michel Gondry de 2004, a peça estrearia em junho. E os ensaios teriam começado no dia 1° de abril. Daí, tudo aconteceu. Ou melhor, não aconteceu. Desde então, porém, o elenco e o diretor Jorge Farjalla mantêm encontros semanais de três horas, pelo Google Talk.

Reynaldo Gianechinni e Letícia Spiller (esq., alto) ensaiam 'Brilho eterno de uma mente sem lembranças'


— Claro que não é a mesma coisa do que ensaiar presencialmente, mas tem sido bom fazer esses encontros. Serve para dar fluxo à nossa criatividade, para conhecer melhor este projeto, que é muito complexo. E para tirar um pouco dessa realidade tão cruel de dentro da gente — comenta Gianechinni.

— Parece até piada que iríamos começar os ensaios no Dia da Mentira. As leituras virtuais têm sido muito emotivas, a própria história já leva para esse lugar — complementa Farjalla.

Premiado com o Shell de melhor ator pelo monólogo “Maracanã”, Ricardo Kosovski vem dirigindo pelo aplicativo Jitsi o solo “Dedé”, junto à equipe técnica e ao ator André Mattos, que também assina o texto.

— Temos encontros de duas a três vezes por semana. A plataforma dá uma dinâmica mais horizontal, porque todos podem opinar na cena, basta abrir o microfone. Não fica tão centrado no diretor — ressalta Kosovski. — Não consigo fazer as marcações, mas avançamos muito na dramaturgia e no tom da interpretação. Vira uma leitura de mesa fortíssima, só que à distância.

Previsto para inaugurar o teatro do Tribunal do Júri, no Museu da Justiça, no Centro do Rio, o espetáculo “Mata-me” foi cancelado pela pandemia a 12 dias da estreia. Releitura do julgamento que absolveu Dilermando de Assis de ter assassinado o escritor Euclides da Cunha, o texto de Miriam Halfim passou a ser ensaiado através do Google Hangouts.

— Inicialmente, a pausa seria de 15 dias. Só que, à medida que aumentou, começamos a pensar numa forma de não perder o que trabalhamos antes. Já tinha feito videoconferências e tenho dado minhas aulas na CAL (Casa de Arte de Laranjeiras) à distância, mas isso é uma experiência totalmente nova, e muito proveitosa — comenta o diretor Ary Coslov.

As ferramentas, como se sabe, são muitas. A Companhia Ensaio Aberto, que ocupa o Armazém da Utopia, tem usado o Microsoft Teams. O diretor Luiz Fernando Lobo comanda por ali a preparação da peça “A exceção e a regra”, de Brecht, com leituras, aulas de voz e exercícios corporais.

—Também temos convidado economistas e juristas para conversar nesses encontros. Por incrível que pareça, tem sido um de nossos melhores estudos ao longo dos 28 anos de companhia — reconhece Lobo. — Nossa produtividade aumentou, as pessoas entram muito focadas.

O Grupo Bestas Urbanas, que iria estrear "Só percebo que estou correndo quando vejo que estou caindo", sua segunda peça, em junho no Centro Cultural da Justiça Federal, vinha fazendo leituras abertas desde janeiro e teve de adaptar seu processo criativo à distância.

— Gostamos de envolver o público no desenvolvimento dos trabalhos, e as leituras já tinham um resultado bem positivo. Para manter uma rotina de trabalho, marcamos ensaios no Zoom às quintas-feiras, o dia em que iríamos estrear — conta o diretor Francisco Ohana. — O texto aborda a sociedade de cansaço, e muito do que estamos vivendo vai se refletir em cena.

E não é só mirando palcos tradicionais que as companhias apelam para ensaios virtuais. Com 30 artistas residentes, a Cia dos Atores cria, via Zoom, o espetáculo “Kabaret Online”, um conjunto de cenas do alemão Karl Valentin, para estrear na internet mesmo, no canal do grupo no YouTube ainda neste mês. A ideia é soltar um vídeo de 15 a 20 minutos por semana.

— Estamos trazendo os textos do Valentin para o momento atual. Há reuniões com todos às segundas, e grupos menores trabalham as cenas durante a semana. Apesar de focarmos no vídeo, as dinâmicas também podem gerar uma montagem tradicional, no futuro — diz o ator, diretor e cenógrafo Cesar Augusto.

Nem sempre os ensaios são fechados. As atrizes Patrícia Selonk e Simone Mazzer, do Armazém, vêm fazendo lives de leituras todas as quintas, às 20h, no projeto QuarenCena. O grupo também prepara ensaios à distância, inclusive de um espetáculo inédito que iria estrear este ano.

— As lives são uma inspiração para continuarmos trabalhando neste momento — diz o diretor Paulo de Moraes. — Vamos viver uma reinvenção formal, até para entender que tipo de teatro faremos na volta.

Com mais de 40 anos de palco, Amir Haddad se rendeu à tecnologia e está dirigindo virtualmente ensaios das peças “A esperança na caixa de chicletes Ping Pong”, com Clarice Niskier (transmitida às sextas, às 17h); “Riobaldo”, com Gilson de Barros (aos sábados e domingos, às 19h); e “A mulher ideal”, com Lorena da Silva (às sextas, às 13h). Todos os ensaios são exibidos nos perfis dos atores no Instagram. Mesmo com tanta atividade on-line, o criador do grupo Tá na Rua espera ansiosamente pelo reencontro presencial, com uma grande celebração nos Arcos da Lapa.

— A Humanidade vive um coito interrompido. A gente chama de “vivo”, de “live”, mas é tudo virtual. Fico encostando o dedo na tela, às vezes afago a cara da pessoa e desligo tudo sem querer — diverte-se Haddad. — Acho que os espaços públicos vão ser até mais usados quando as pessoas tiverem coragem de voltar aos locais fechados. Elas vão entender que uma cidade é para quem vive nela, e não para quem vive dela.

Gustavo Cunha e Nelson Gobbi
in Globo

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