Conversas e memórias com Teatro dentro #3 - por Fernando Louro

Olá teatreiros
...isto é só a gente a desabafar, mas quando se entra na casa dos “setentas” e começamos a pensar que pelo menos há 6 décadas vejo Teatro, é difícil não pensar que tenho material do bom e do melhor, “guardado” a sete chaves na memória do muito que vi, gostei e aplaudi.
Por certo que para alguns dos meus hipotéticos leitores terei lembranças que devem parecer pré-históricas, já para não falar de saudades muitas, de tantos e tantos grandes nomes injustamente esquecidos e em muitos anos de pós de palco adormecidos.
Atrevo-me a iniciar hoje e aqui, uma pálida amostra de alguns dos grandes momentos e de grandes noites (incluindo os que também vi à tarde) de algum do melhor Teatro Português que se ia fazendo.
Uma escolha ao sabor de recordações e sem consultar arquivos, que não os da memória, terá por certo lacunas e imperfeições aqui e ali, mas será muito principalmente para os mais novos, uma pequena “mostra” daquele bom Teatro que com mais ou menos dificuldades ia sendo possível fazer neste País e que tive oportunidade de ver desde meados do século passado. (Meu Deus, como estou velho).
Então, se devemos começar sempre pelo princípio como manda a regra, comecemos pois pelo princípio e que o contra regra mande subir o pano...
Ano de 1961. A minha primeira “ grande aventura” de espectador, vai do Mucifal (Colares) a Lisboa, direitinha à bilheteira do Teatro Nacional Dona Maria II num sábado à tarde. Que vaidade emoção pedir um bilhete para a Geral (vulgo galinheiro) encavalitado em cima do Balcão de 2a Ordem e sentir-me tão confortável como se na primeira fila estivesse...

Teresa Mota e João Perry em "Romeu e Julieta"

Que orgulho, estar ali a ver “ROMEU e JULIETA” de Shakespeare com o João Perry e a Teresa Mota (que viria a ser durante anos a minha imaginária namorada). Recordo também que foi a primeira vez que vi em palco Amélia Rey Colaço e o grande José de Castro de quem mais tarde me tornaria amigo e seu fervoroso admirador. Que tarde inesquecível e que difícil voltar para casa sem ao menos poder ver a Teresa Mota mais de perto na porta dos Artistas. Mas ela nunca mais aparecia e o comboio esperava-me para o regresso inevitável...

Amélia Rey Colaço, Teresa Mota e Mariana Rey Monteiro em "Romeu e Julieta"

Tomei-lhe o “vício” e na peça seguinte lá estava eu caído outra vez no “galinheiro” a ver com nervoso miudinho e não menos expectativa, a grande e muito considerada Actriz Palmira Bastos, de quem tanto já ouvira falar. “As árvores morrem de pé”, está claro – com Anna Paula, Varela Silva, Luis Filipe, José de Castro nos principais papéis e uma actriz extraordinária que nunca mais esqueci e que poucos se lembram, chamada Luz Veloso. A entrada em cena de D. Palmira (como toda a gente lhe chamava, incluindo colegas) é algo inexplicável ainda hoje. Como se de uma missa ou cerimonial se tratasse, o silêncio era “pesado” e uma expectativa rara pairava pela sala toda até essa entrada ansiosamente aguardada. Verdadeira diva para o público daquela época a grande Actriz, era sem dúvida um prodígio na sabedoria de estar em cena e como se costuma dizer, tinha os segredos todos de ter o “seu” público na mão. À saída na porta dos artistas como se de uma romagem se tratasse, havia lágrimas, lenços a acenar e muitos aplausos. Com passo miudinho, sorridente e acenando, D. Palmira lá seguiu no táxi que a esperava, até á próxima representação por certo já com lotação esgotada.

Palmira Bastos

Ainda nesse ano, quando me apercebi que meus pais se preparavam para encontrar bilhetes para ir ver a Revista do momento, haveria de experimentar a enorme ousadia incentivada por mim próprio, de ver um Teatro para maiores de 18 anos. (Coisa horrenda, que durante anos e anos existiu, mais tarde passando a maiores de 17 e que só viria a terminar em Abril de 74). Sabendo pelos jornais que o sucesso era grande e com enormes enchentes, amigos me contaram que a confusão á entrada era mais que muita. Não foi fácil mas lá convenci ao fim de algum tempo os meus pais que eu ara alto e conseguiria passar à entrada. Assim aconteceu e fui também com eles ao Coliseu, ver a sumptuosa e espectacular Revista “Mulheres de Sonho”com cenários e figurinos do genial Pinto de Campos. Um elenco memorável com o pequeno/grande Eugénio Salvador, Barroso Lopes, Costinha, Anita Guerreiro, Leónia Mendes, Maria Domingas, Luisa Durão e uma voz vinda de Cuba que fazia o Coliseu vir abaixo (mesmo sem microfone) quando cantava e bisava “Avé Maria no Morro” – Xiomara Alfaro.


Que espanto e que deslumbramento para o jovem espectador que eu era, ver as “Mulheres de Sonho” descer da cúpula e aterrarem na plateia, infelizmente tão “longe” da Geral onde me encontrava... Que prometedor e inesquecível início da minha “carreira” na Revista. Foi mais que suficiente para ficar durante muitos e muitos anos fiel “apaixonado” pelo Teatro de Revista. Já agora vos conto, que tal como eu previra, com tanto empurrão e aperto na hora da entrada, lá consegui passar em bicos de pés, convencido que se por acaso o porteiro reparasse em mim, via logo que eu tinha 18 anos, ou mais...


Noite de estreia de "O Milagre de Ana Sullivan"

Em 62 ou 63 já não me lembro bem, acontece o meu “encontro” com a Actriz que a Rádio e a Televisão conseguiam fazer chegar a minha casa mas que ainda não me fora possível vê-la em palco – Eunice Muñoz. Um amor, um respeito e uma admiração para toda a vida. No velhinho e saudoso Teatro Avenida, com encenação de Luis Sttau Monteiro e ao lado de uma jovem de 13 anos - Guida Maria - que viria a ser considerada a grande revelação dos últimos anos - estreia-se com enorme êxito “O Milagre de Anna Sulivan” de William Gibson. Eunice emocionava Lisboa. Era sublime. A história da vida de Helen Keller foi um dos maiores sucessos de sempre da Companhia de Vasco Morgado e fez uma longa carreira além de uma bem sucedida digressão pelo País. Eunice e Guida Maria faziam arrepiar e arrastar durante noites e noites um público numeroso como raramente se via no chamado “teatro declamado”. As sessões esgotavam diariamente e os aplausos no final eram em lágrimas e pareciam infindáveis em cada espectáculo. Não podia ter tido melhor peça para ver pela minha vez primeira Eunice a representar. Ao seu lado também grandes nomes como Fernanda Borsatti, Baptista Fernandes, Isabel de Castro e João Lourenço entre outros. Curiosamente, diga-se que Eunice preparou e estudou este “papel” em pouco mais de 15 dias para substituir inesperadamente a actriz Lígia Teles impossibilitada de conseguir estrear. Depois do grande sucesso de “Joana d’Arc” e também no Avenida, Eunice em “Anna Sullivan”, voltava a emocionar Lisboa e mais tarde todo o País também, numa digressão bem sucedida e prolongada. 


Quase sempre é assim o Teatro. Se é bom, o Público não falha e é quem manda. 
Parece que ainda mal comecei a desfolhar este meu álbum com memórias dentro, e já devo ter ultrapassado há muito, este espaço que muito prezo e agradeço. Com tantas e tão boas recordações que tenho para vos contar, tão depressa não se vão ver livres de mim...
Até breve e saudações teatrais.
Fernando Louro

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