“Menino de Sua Avó”, de Armando Nascimento Rosa, é uma boa surpresa. Escrita propositadamente para ser interpretada por Maria do Céu Guerra, que ao subir ao palco de “A Barraca” se faz acompanhar pelo actor Adérito Lopes, a peça divaga sobre uma possível relação muito estreita entre Fernando Pessoa e a sua avó Dionísia Estrela Seabra, que existiu de verdade, mas de que se não sabe, por ciência exacta, se manteve ou não com o poeta o tipo de relacionamento que a peça imagina. Para o caso não é importante. A avó Dionísia era louca, teve épocas passadas em Rilhafoles, e não será muito estranho que o poeta tenha sentido por essa personagem afecto e admiração. A primeira parte da obra é de uma grande coerência e interesse, com as conversas de Fernando Pessoa e Dionísia, em vida de ambos. Pessoa é ainda jovem, descobre a poesia e a vida, e anda ainda emerso no seu primeiro heterónimo, Alexander Search, que escrevia em inglês.
Menos conseguida é a segunda parte, sobretudo o início, quando Dionísia morre, o seu fantasma aparece a Fernando Pessoa, este se vai multiplicando em heterónimos e pseudónimos, prosseguindo o diálogo entre ambas as figuras, já depois da morte do poeta, mesmo depois da transladação dos seus restos mortais para os Jerónimos, e culminando na actualidade. O final é muito bem desenredado, com os actores a deixarem o palco e a instalarem-se na plateia para assistirem à peça que vai terminar para nós, espectadores mortais (e iniciar-se para eles).
O diálogo é inteligente e divertido, mesmo tendo em conta as situações referidas, o que, de certo modo, conduz a obra pelos terrenos de um discreto humor negro.
Portanto, a peça vale a pena. É uma boa revelação portuguesa, o que diga-se de passagem, é muito raro. Passemos à sua concretização em palco. Minimalista, sim, mas extremamente eficaz, sem deslumbramentos vanguardistas que muitas vezes resultam penosos. José Costa Reis assina a realização plástica e os respectivos figurinos, tudo de bom gosto e sobretudo de eficácia cénica. António Victorino d'Almeida compôs e interpretou temas originais para a banda sonora que se colam muito bem ao desenrolar do espectáculo, o que não é de espantar no maestro. Finalmente, falemos da interpretação. Adérito Lopes compõe Fernando Pessoa e derivados com graça e justeza. Não é fácil o seu trabalho, necessita de registos diversos, as mutações são discretas e sábio o resultado final. Maria do Céu Guerra está magnífica. Ela é, indiscutivelmente, uma das grandes actrizes da cena portuguesa, e aqui encontra-se no seu elemento natural, sensível e ligeiramente irónica, saboreando com graça e uma desenvoltura muito sua a loucura desta avó que faria as delícias de qualquer neto. Na primeira parte ela chega a ser sublime. Sabem aquela sensação que por vezes se tem, quando estamos sentados numa plateia, e nos apetece saltar para o palco e abraçar os actores? Pois bem, tive de esperar pelo final, para não parecer mal.
A peça terminou hoje a sua carreira n’ A Barraca, mas não desesperem, creio que vai voltar lá para Setembro. Merece-o.
Lauro António
in "Lauro António Apresenta"
O MENINO DE SUA AVÓ
Texto inédito de Armando Nascimento Rosa; Criação de Maria do Céu Guerra (em Dionísia Seabra Pessoa) e Adérito Lopes (em Fernando Pessoa); Encenação Partilhada; Apoio Rita Lello; Música original António Victorino d'Almeida; Harpa Ana Dias; Cenografia e figurinos José Costa Reis; Aderecista Marta Fernandes da Silva; Mestra Costureira Alda Cabrita; Montagem Mário Dias; Assistência Marta Soares; Vídeo Paulo Vargues; Sonoplastia Ricardo Santos; Iluminação Fernando Belo; Produção Executiva Paula Coelho e Inês Costa.
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