Quando a chuva desiste de cair, no lugar de Sembora, a vida se altera: todos se movimentam segundo os seus creres; a nossa tia, reza: Pai Nosso, Cristais no Céu; a mãe culpa os fumos da nova fábrica; o pai fala com o rio; o avô sonha em conhecer o mar e o nosso protagonista [o neto, o filho e o sobrinho] observa e deixa-se afectar pelos mundos que se abrem a sua frente.
A morte de Ntoweni provoca um desequilíbrio na ordem natural da vida, o seu não-falecido esposo deseja com ela se encontrar, entretanto a chuva, que se mantém tão pasmada como o nosso narrador, esquece-se do seu destino.
Da necessidade de retomar a ordem universal, guiados pelo olhar de uma criança, assistimos, no decorrer da peça, à revelação de cada personagem, os seus segredos e os seus sonhos.
Quando o avô inicia a sua viagem, para “conhecer o mar”, o ciclo completa-se e inicia-se o ritual de despedida, ou o encontro solitário do rio com o solo.
E finalmente, em solo africano, chove...
“E de novo gritei e gritei até deixar de me escutar, a voz submersa no remoinhar da corrente. Mas o barquinho foi, se dissolveu no horizonte. A última coisa que vi não foi a canoa mas a cabaça tombando das mãos da primeira Ntoweni. E da cabaça irrompendo, fluviosa, a serpente prateada da água.
Ainda hoje os meus passos se arrastam na travessia do rio, olhar perdido na outra margem. Meus passos se vão tornando líquidos, perdendo matéria, diluindo-se no azul da correnteza. Assim, se cumpre, sem mesmo eu saber, a intenção de meu velho avô: ele queria o rio sobrando da terra, vogando em nosso peito, trazendo diante de nós as nossas vidas de antes de nós. Um rio assim, feito só para existir, sem outra finalidade que riachar, sagradeando o nosso lugar.
Como ele sempre dissera: o rio e o coração, o que os une?
O rio nunca está feito, como não está o coração. Ambos são sempre nascentes, sempre nascendo. Ou como eu hoje escrevo: milagre é o rio não findar mais. Milagre é o coração começar sempre no peito de outra vida.”
Mia Couto (in A chuva Pasmada)
A morte de Ntoweni provoca um desequilíbrio na ordem natural da vida, o seu não-falecido esposo deseja com ela se encontrar, entretanto a chuva, que se mantém tão pasmada como o nosso narrador, esquece-se do seu destino.
Da necessidade de retomar a ordem universal, guiados pelo olhar de uma criança, assistimos, no decorrer da peça, à revelação de cada personagem, os seus segredos e os seus sonhos.
Quando o avô inicia a sua viagem, para “conhecer o mar”, o ciclo completa-se e inicia-se o ritual de despedida, ou o encontro solitário do rio com o solo.
E finalmente, em solo africano, chove...
“E de novo gritei e gritei até deixar de me escutar, a voz submersa no remoinhar da corrente. Mas o barquinho foi, se dissolveu no horizonte. A última coisa que vi não foi a canoa mas a cabaça tombando das mãos da primeira Ntoweni. E da cabaça irrompendo, fluviosa, a serpente prateada da água.
Ainda hoje os meus passos se arrastam na travessia do rio, olhar perdido na outra margem. Meus passos se vão tornando líquidos, perdendo matéria, diluindo-se no azul da correnteza. Assim, se cumpre, sem mesmo eu saber, a intenção de meu velho avô: ele queria o rio sobrando da terra, vogando em nosso peito, trazendo diante de nós as nossas vidas de antes de nós. Um rio assim, feito só para existir, sem outra finalidade que riachar, sagradeando o nosso lugar.
Como ele sempre dissera: o rio e o coração, o que os une?
O rio nunca está feito, como não está o coração. Ambos são sempre nascentes, sempre nascendo. Ou como eu hoje escrevo: milagre é o rio não findar mais. Milagre é o coração começar sempre no peito de outra vida.”
Mia Couto (in A chuva Pasmada)
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