O novo director artístico do D. Maria diz que a contenção orçamental vai pautar toda a sua actuação à frente do teatro.
Diogo Infante acredita que menos produções e muitas "operações de charme" vão permitir que a casa do Rossio aumente a qualidade da sua oferta cultural. Em entrevista exclusiva ao Expresso, o novo director artístico do D. Maria diz o que quer e o que pensa do Teatro Nacional.
O convite para dirigir o TNDMII coincidiu com a sua saída do Teatro Municipal Maria Matos. Que relação existe entre as duas coisas?
Não saí do Maria Matos para vir para o Nacional. Contemplei o convite do ministro da Cultura porque já estava de saída do Teatro Municipal. Já estava em curso um processo que, para mim, era evidente que iria resultar na minha saída do Maria Matos. Ainda assim, depois de ter recebido o convite do ministro, aguardei mais um tempo, fiz novas pressões no sentido encontrar um compromisso que tornasse viável a programação que tinha negociado para aquele teatro municipal.
O que respondeu ao ministro?
Disse-lhe que o timing não era mau, que estava num processo de desvinculação com o Maria Matos, mas porque este ainda estava em curso precisava de algum tempo para ver se o que aconteceria. Na altura, em Junho, não sei se estava preparado para sair do Maria Matos. Estava muito ligado emocionalmente àquele projecto e não o queria abandonar assim. Hoje, em retrospectiva, penso que sai na altura certa.
Quando apresentou a demissão, em Julho, e foi recebido pelo presidente da Câmara Municipal de Lisboa, já tinha aceite o convite do ministro da Cultura?
Sim. Já tinha tomado a minha decisão e não estava ali para fazer nenhum jogo. Fui lá explicar, institucionalmente, porque é que me demitia.
Qual foi a sua primeira reacção em relação ao convite do ministro da Cultura?
Fiquei surpreendido. Senti um misto de orgulho por alguém poder pensar que eu merecia essa confiança, e, ao mesmo tempo, a noção de que era uma tarefa difícil. Lembro-me de falar com alguns colegas que já tinham sido convidados para o cargo e que nunca tinham aceitado. Todos me disseram que sabiam que não teriam as condições ideais para poderem desenvolver um trabalho que achavam que deviam fazer. Pensei nisso. Pensei que não ia ser fácil. Mas não gosto de tarefas fáceis, gosto da ideia do desafio e de pensar que estou numa altura da vida em que me posso lançar a projectos desta envergadura. Incomoda-me a ideia de pertencer a uma geração que aponta o dedo e critica, mas que, quando chega a altura de dar um contributo, recua.
Pediu algumas condições de trabalho?
Disse que para vir teria que trazer comigo algumas pessoas da minha confiança, sobretudo pessoas que me ajudassem a viabilizar o projecto nos moldes que me propus desenvolvê-lo. Trouxe pessoas que estavam a trabalhar comigo no Maria Matos.
Os estatutos do teatro permitem que o director artístico acumule as duas funções, o Diogo não o faz...
Sim. Mas o ministro disse-me de início que gostava que eu não fizesse parte do Conselho de Administração. Não me opus. Não tenho nada contra, antes pelo contrário, o trabalho é tanto... O ministro acha que, de alguma forma, é perverso que o presidente do Conselho de Administração e o director artístico sejam a mesma pessoa. Concordo, não tenho qualquer espécie de aptidão ou vocação específica para esse tipo de trabalho. Gosto muito mais de me dedicar ao projecto artístico, que, obviamente, não se esgota na programação. É evidente que tenho reuniões periódicas com o CA e que discuto tudo em conjunto com ele.
Foi confrangedor para si já ter aceite ser director do D. Maria e ter de esperar pela exoneração da anterior direcção e depois, até Dezembro, pela nomeação?
Sim. Foi um tempo excessivo, que decorreu, tanto quanto percebi, de uma série de contingências legais, políticas, e sobretudo com a articulação entre os ministérios envolvidos. Não pude por isso exercer cabalmente as minhas funções até à nomeação oficial, em finais de Dezembro, nem falar enquanto director desta casa. Mas já estava a realizar uma série de contactos informais e a pensar e estruturar o meu projecto. Permitiu-me viajar, falar com pessoas, sondar outras, para que, no espaço de um mês e meio após a nomeação pudesse ter uma programação para apresentar.
Antes da nomeação chegou a ser contratado como consultor do CA para a programação...
Sim, é verdade. Fui contratado em nome individual em Outubro.
Quais são os moldes de funcionamento que propõe para o TNDMII?
Acima de tudo a contenção orçamental.
Qual é o orçamento de que dispõe?
Um milhão e meio de euros para programação de um bolo total de cinco milhões de euros. Sei que é um orçamento que se mantém, mas também sei que o orçamento para a programação (a Sala Garrett, a Sala Estúdio e as demais actividades) não chega a um terço do total da verba de que o teatro dispõe. A estrutura absorve mais de dois terços. Essa é uma lógica de funcionamento de há muitos anos, que, agora, estamos a avaliar num trabalho de reconhecimento das mais valias das pessoas da casa com o objectivo de as potenciar, ou seja, com a prata da casa rentabilizar melhor o investimento, de forma a fazer uma gestão equilibrada de um orçamento que é curo para aquilo que acho que se espera de um teatro nacional. A partir do momento que comecei a exercer funções, apercebi-me de uma série de solicitações e expectativas do meio artístico em relação a esta casa como forma de viabilizar projectos. Muitos festivais e eventos contavam com a participação financeira do teatro, o que pressupõe um encargo pesado para uma estrutura que lida no seu limite com recursos que são poucos em relação à sua dimensão.
Era também esse o problema que se lhe colocava no Maria Matos.
Mas aqui são recursos proporcionalmente diferentes. O dinheiro continua a ser pouco para que possamos cumprir aquilo que são os pressupostos e a missão de um teatro nacional.
Quanto é que seria preciso?
Não sei. A questão é: até onde é que podemos ir. Estou a aplicar a lógica da temporada que visa rentabilizar o investimento.
Menos produções, portanto?
Sim.
Já afirmou que não conhecia a realidade da estrutura do Nacional. Depois de cá estar há alguns meses, como vê essa realidade?
Não quero tecer comentários que possam ser deselegantes em relação às anteriores direcções. Mas acho que o D. Maria, com todas as suas qualidades e os seus defeitos, não cumpre a sua missão. Não tem sido suficientemente activo na produção, nem um papel relevante no panorama cultural ao ponto de nós lhe reconhecermos esse mérito e esse estatuto de teatro nacional. Mesmo assim, sinto-me muito feliz por verificar a disponibilidade das pessoas da casa para acolherem um projecto que de alguma forma dê uma nova vida a este teatro. Se não tivesse comigo as cerca de 90 pessoas que trabalham aqui seria muito complicado.
Diz que a sua popularidade o tem ajudado...
Falo mais em operações de charme que tenho levado a cabo e refiro-me ao meio artístico. Sentia que grande parte dos meus colegas estavam muito renitentes e muito céptico em relação à anterior administração, e aqui, quando falo em administração falo também em direcção. Senti que muitos actores e encenadores não queriam colaborar com o Teatro Nacional. Não interessa saber porquê, o facto é que diziam que não queriam trabalhar aqui. Com a minha vinda tenho sentido que há uma maior abertura. As pessoas estão pelo menos dispostas a ouvir. A operação de charme passa por levá-las a pensar comigo em soluções criativas para o teatro. Estou a pedir-lhes ajuda, a pedir-lhes que pensem em projectos que lhes apeteça realizar aqui. Acho que esta é a minha mais-valia: estar muito próximo do meio artístico e ter, naturalmente, alguns canais privilegiados.
Como viu o encerramento do Teatro Villaret e do Teatro da Politécnica, que estavam afectos ao Nacional?
Como saberá, o Ministério da Cultura, chamou a si, felizmente, a resolução dos contratos com o Teatro Villaret e com o Teatro da Politécnica.
Haverá concessões desses espaços?
Não sei. Sei que neste momento já não têm licença de apresentação de espectáculos. São situações que têm que ser resolvidas.
Mas pela tutela.
Exactamente. O MC está a negociar soluções para estes espaços.
Foi uma decisão da tutela ou do CA do TNDMII?
Foi uma decisão concertada, mas quando o ministro falou comigo disse-me imediatamente que esse era o caminho, porque financeiramente não era viável suportar os custos dessas salas, ainda mais estando elas carenciadas de investimento e ainda ser necessário dotá-las de recursos humanos para programar.
Também sentiu a necessidade de fazer novas contratações no D. Maria, nomeadamente na área da direcção de cena e também no departamento directivo, falo do cargo ocupado por Natália Luiza, sua adjunta?
Essas são algumas das pessoas que pus como condição para vir.
E elas não aumentam o custo da estrutura dirigente?
Não porque são lugares que não estavam ocupados. Algumas das pessoas que estavam afectas à direcção saíram com a antiga direcção. São lugares de confiança. Quando eu me for embora, elas vão comigo. No caso do director de cena não porque é um cargo técnico, mas que não existia. A direcção de cena para mim é algo que espelha bem a maneira como gosto de trabalhar com os criadores, dou-lhe um relevo muito grande.
Que programação poderá, de alguma forma, substituir toda uma série de projectos com países da Lusofonia programados pela anterior direcção?
Em primeiro lugar, esses projectos não estavam contratualizados. Alguns estavam apalavrados e em condições muito pouco claras. Outros manteremos, como o Prémio da Lusofonia. De resto, do meu conhecimento, desses projectos houve apenas um contrato fechado que o CA teve que renegociar, antes da minha chegada. Tudo o resto eram projectos não passíveis de se concretizar. Isto dito assim pode parecer que estou a inviabilizar situações que podiam ser potencialmente interessantes, admito, mas tive que fazer um flic-flac à retaguarda com um mortal empranchado e repensar o modelo de funcionamento de uma estrutura que não tinha capacidade de dar resposta às muitíssimas solicitações. Precisamos de um modelo funcional, realista e consequente. Penso encontrá-lo com a ajuda dos criadores nacionais. Estamos a viver um momento particular, um momento de crise. A cultura necessariamente reflecte em primeira-mão essa tendência e, portanto, eu tenho nas mãos uma espécie de presente envenenado.
A máquina ainda é pesada.
De facto é. Mas além disso, esta história de sermos uma empresa pública complica os procedimentos. Falo de procedimentos legais que não estão nem moldados nem pensados para a actividade teatral. Somos tratados como uma empresa normal e isso complica os mecanismos de todo o funcionamento da casa.
A contenção também se faz sentir na contratação de actores?
Nenhum actor deixou de aceitar trabalhar connosco por causa de dinheiro. A contenção não tem tanto a ver com pagar menos aos artistas porque eles já recebiam mal, mas sim com o facto de partilharmos com os criadores a necessidade de haver uma responsabilização na criação.
Está também a tentar dar nova cara à casa.
Sim. Estou a tentar reformular os camarins que estão podres há 30 anos, a tentar revestir com novos tecidos os sofás, as alcatifas, as fardas... Há intervenções estéticas não danosas.
O dinheiro sairá do orçamento de funcionamento e não do de programação?
Um está aliado ao outro. Mas tenho uma pequena margem no orçamento de programação que se prende com o facto de durante os primeiros meses da temporada não houve actividade.
Esta é uma temporada atípica. Tem menos três meses de actividade e o mesmo orçamento.
Mas isso permite-me dignificar áreas de trabalho, espaços públicos e privados.
Também tornar mais atractivo o teatro?
Exacto. Conseguimos o apoio do primeiro-ministro para um tapete novo para o salão nobre, o actual está absolutamente nojento, velhote e rasgado. Vamos repensar o modelo de funcionamento das bilheteiras, renovar as fardas... São intervenções que podem parecer supérfluas mas não são. Conferem uma dignidade e um bem-estar aos funcionários, mas também passam uma imagem fresca do teatro. Uma das coisas que tenho perguntado às pessoas com quem falo é que imagem têm do Teatro Nacional. A generalidade delas fala de uma casa velha, institucional, muito formal, muito pobre e uma seca.
A experiência do Maria Matos vai valer-lhe para trazer mais gente ao teatro?
É óbvio que a experiência do Maria Matos me dá alguma confiança. Tenho muito poucas certezas mas tenho algumas convicções. E tenho a convicção de que se conseguir ter as condições mínimas, sou capaz de produzir alguns resultados interessantes. Se calhar não com a rapidez com que o fiz no Maria Matos. É preciso ter algum cuidado nas intervenções e alterações que se fazem aqui. Admito que os resultados possam surgir um pouco mais a médio prazo. Mas se todos tivermos alguma paciência e nos derem o benefício da dúvida, acho que é possível deixarmos aqui uma marca interessante. Não sei se será o projecto ideal, mas é, para já, o projecto possível, feito com um enorme rigor, por uma equipa extremamente preocupada, o que é natural, ao entrar numa estrutura com um buraco orçamental brutal.
Está a falar das dívidas já liquidadas no valor de 1,4M de euros. Eram dívidas do teatro, da tutela? Foram pagas com dinheiro do TNDMII S.A. ou com verbas do MC?
Sendo o Teatro Nacional uma empresa as dívidas são suas, foi esta estrutura que as contraiu, mas também já foi esta estrutura que as saldou.
Não foi a tutela que as saldou?
A tutela saldou-as via TNDMII.
Portanto foi através de uma transferência referente à dotação do capital social da empresa?
Exactamente. Mas foi esta administração que o conseguiu, através de uma série de negociações e de pressões junto dos ministérios da Cultura e das Finanças, alertando-os para a necessidade de regularizarmos a situação para podermos partir do ponto zero.
Que dívidas eram essas?
Dívidas a todos os tipos de fornecedores. Nem um anúncio no vosso jornal poderíamos colocar porque não no-lo aceitavam. Não pagávamos... Todo os serviços que permitem que o teatro se mantenha activo estavam seriamente comprometidos, alguns com dívidas já avultadas e longas. Como se sabe o Estado é um mau pagador e por inerência os seus equipamentos acabam por sofrer essa consequência. É evidente que é preciso manter os ordenados em dias às pessoas e não lhes retirar as suas regalias e condições de trabalho, o que torna a situação delicada. Mas também é preciso manter uma actividade, aquilo que, de alguma forma, justifica a nossa própria existência. Esse equilíbrio tem que ser repensado.
A comunicação e publicidade são indispensáveis a um teatro. Dizem as regras de boa gestão que elas não devem ultrapassar os 20% do custo das produções. Desse milhão e meio de euros quanto pensa gastar nesta área? Ou está a considerar arranjar um mecenas?
Neste momento estamos empenhados em fazer contactos institucionais de forma a podermos aliviar um pouco os encargos que temos com a comunicação, mas também estabelecer parcerias que nos possibilitem e viabilizem ter acesso a outro tipo de espectáculos a que não chegaríamos sozinhos. Vamos tentar lançar um repto ao mercado apesar deste ser o momento mais ingrato para o fazermos. Até à procura de parceiros para lavatórios de casa-de-banho andamos e não é fácil. Tudo isto representa dinheiro. O projecto ainda não está suficientemente estruturado...
A sua imagem também funciona nesse campo?
A minha imagem serve pelo menos para nos ouvirem. As pessoas recebem-nos. Espero vir a conseguir seduzir uma empresa ou uma instituição que se queira associar a nós. Acredito é que terá que haver um período de avaliação do nosso trabalho. Mas se conseguirmos recuperar a dignidade e o prestígio que o teatro merece, não vejo razão para que não possamos ter um parceiro à altura. E a grande mais-valia de poder ter um apoio dessa natureza tem a ver com a forma como nos projectamos. Não podemos deixar, pois, de investir na comunicação, como falava. E não será pouco.
Alexandra Carita (texto) e Alberto Frias (fotos) in Expresso
Versão integral da entrevista publicada na edição do Expresso de 21 de Fevereiro de 2009, 1.º Caderno, página 28.
Comments
Os bons actores e afins terão sempre o merecido reconhecimento (ou quase) não deixes de ser quem és! Com respeito e carinho por tudo isto e muito mais, Ana.