Opinião - "O Que Diz Molero"

por Lauro António

No Teatro Nacional de D. Maria II, “O Que Diz Molero”, o festejado romance de Dinis Machado, lançado há 30 anos, serve de base a um magnífico espectáculo de teatro, num excitante trabalho de adaptação do encenador brasileiro Aderbal Freire-Filho. E digo “adaptação” para marcar desde já uma posição.
Aderbal Freire-Filho é conhecido por introduzir um conceito novo, o de “romance-em-cena”, conceito criado no início da década de 90, quando decidiu pôr em palco uma obra literária sem mudar uma palavra do texto original. O romance chamava-se “A Mulher Carioca aos 22 anos”, de João de Minas, e foi a primeira experiência, a que se seguiram outras, como “O Púcaro Búlgaro”, de Campos de Carvalho, ou este ““O Que Diz Molero”, diálogo entre duas personagens que lêem um relatório sobre “um rapaz” que nunca é referido pelo nome próprio, e que é o centro de uma picaresca aventura que, partindo de um popular bairro de Lisboa, extravasa pela imaginação para cenários de todo o mundo.
Aderbal Freire-Filho afirma agora que “se tivesse encenado este romance há mais tempo seria tentado a fazê-lo com apenas dois actores.”O que vemos em cena inicialmente são dois actores que começam a ler o relatório, mas passando a palavra a outros quatro que vão reinventando personagens, dezenas e dezenas de figuras que revivem no palco as situações descritas por Dinis Machado. O efeito é notável, de imaginação, de humor, de invenção, de inteligência. Para o que concorre também o belíssimo e eficaz cenário de José Manuel Castanheira, director artístico adjunto do D. Maria II, que já trabalhou com mais de 60 encenadores, e que, em 1999, conheceu em Madrid este director cearense, com quem, desde então, tem feito vários trabalhos no Brasil. O cenário amontoa de forma orgânica dezenas de arquivos de metal, com gavetas que escondem adereços de cena e acendem luzes e definem espaços e locais. Excelente, como excelente é o desenho de luzes que rasgam a penumbra geral.

“O romance-em-cena só existe para dizer que o que está posto no palco não é a adaptação de um romance, é o próprio (romance)”, explicou o encenador. Ora a verdade é que, sendo embora o romance que está em cena, não é o romance que está em cena. É o romance, sim, palavra por palavra (enfim, com muitos cortes: “Fizemos uma versão para preguiçosos e pessoas que sofriam da coluna...”, ironizou o encenador), mas é o romance numa nova linguagem, “lido” por alguém, “interpretado” por um elenco, encenado, “adaptado”.
Depois de dois anos em cena em várias cidades brasileiras (Rio de Janeiro, São Paulo, festivais de teatro, etc.) e de ter sido apresentada no Uruguai e na Holanda, este espectáculo de Aderbal Freire-Filho que chega agora a Lisboa, demonstra bem o entusiasmo do encenador pelo livro de Dinis Machado há mais de 25 anos. Explica: “Abri o livro e fiquei absolutamente deslumbrado com as primeiras páginas. Apaixonei-me pelo livro nessa época”. A representação tinha, inicialmente, cerca de cinco horas, e está agora reduzida a metade, mas o que vemos é um preciso trabalho de encenação que merece inteiramente a atenção e o carinho do público português. O magnífico elenco mostra-se coeso e divertido na forma como joga com as palavras e as situações, como usa todos os artifícios da arte cénica para levar a água ao seu moinho. Como cita e dispersa referências literárias, teatrais, cinematográficas.
O romance de Dinis Machado já tinha sido representado, em teatro, em Portugal, em 1994, numa adaptação teatral de Nuno Artur Silva, com interpretação de José Pedro Gomes e António Feio, com encenação deste último.

Dinis Machado nasceu em 1930, em Lisboa. Apesar de ser inicialmente um jornalista ligado sobretudo ao desporto, fez crítica cinematográfica, além de ter participado das comissões organizadores de diversos festivais e ciclos cinematográficos para a Casa da Imprensa de Lisboa. Dedicou-se também à edição de banda desenhada, tendo sido chefe de redacção das revistas “Tintin” e “Spirou”. Escreveu três livros policiais sob o pseudónimo de Dennis McShade: "Mão Direita do Diabo", "Mulher e Arma com Guitarra Espanhola" e "Réquiem Para D. Quixote". Além de "O Que Diz Molero", escreveu: "Discurso de Alfredo Marceneiro a Gabriel Garcia Márquez", "Reduto Quase Final" e “Gráfico de Vendas com Orquídea”
“O Que Diz Molero” é um dos maiores êxitos editoriais portugueses, com mais de cem mil exemplares vendidos, e traduzido para francês, alemão, espanhol, romeno e búlgaro.

in "Lauro António Apresenta..."
www.lauroantónioapresenta.blogspot.com

Encenação: Aderbal Freire-Filho
Actores: Gilray Coutinho, Thelmo Fernandes, Isio Guelman, Rachel Iantas, Savio Moll, Cláudio Mendes.
A peça ficará em cartaz, de terça-feira a domingo, até 4 de Fevereiro, no Teatro Nacional de D. Maria II.

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