A peça sobe ao palco pela primeira vez, pela mão da Companhia com quem o dramaturgo brasileiro e fundador do Teatro do Oprimido trabalhou nos primeiros anos.
No encerramento das comemorações dos 30 anos da BARRACA, Helder Costa encenou o espectáculo que é nas palavras de Augusto Boal “um boulevard macabro” que trata de famílias “nela a família genética é apenas metáfora que esconde e revela outras famílias”.
O espectáculo tem nos papéis principais Maria do Céu Guerra e João D'Ávila e conta ainda com Rita Fernandes, Pedro Borges, Ruben Garcia e Sérgio Moras.
“A Herança Maldita” estará em cena no TeatroCinearte de 5ª a Sábado às 21h30.
O preço dos bilhetes é de 12,5€ (10€ para estudantes, grupos, maiores 25 e maiores 65). A duração do espectáculo é de 1h30 sem intervalo.
Boal regressa à Barraca. Boal, um cavaleiro andante de boa memória, um artista criador e subvertor do Teatro, da comunicação, da acção social, cívica e política. Boal, o mestre com que a BARRACA teve a felicidade de aprender nos primeiros passos, um irmão mais velho que teve a ternura e a compreensão para o desejo de Risco e Descoberta do Novo desse grupo recém – nascido.
É um facto feliz que o nome Augusto Boal entre novamente no nosso repertório no ano em que comemoramos 30 anos. E é uma honra que nos tenha escolhido para fazer a estreia Mundial da sua ultima peça “A Herança Maldita”.
Boal dá o nome de “bulevar macabro” a este texto; corresponderá para o nosso vocabulário Europeu a “comédia negra”, ou seja “Black comedy” (pois, como Boal faz dizer a um dos seus personagens “hoje só se fala Inglês, acentos, parágrafos, etc., tudo é em Inglês”.
A história fala das relações actuais, familiares ou não, totalmente dominadas pelo dinheiro; digamos que se trata de um “close up” da ideologia económica neo-liberal que conduziu à globalização Universal.
A peça faz rir, faz rir muito. E também faz pensar. Como todos os espectáculos que A Barraca montou durante a sua já longa existência.
Foi um feliz reencontro com o nosso primeiro companheiro de viagem. Que ficará muito feliz por voltar a encontrar o público que o aplaudiu e adorou.
Helder Costa
A FAMÍLIA COMO METÁFORA
Esta peça trata de famílias: nela, a família genética é apenas metáfora que esconde e revela outras famílias – a que já foi pátria, tribo, etnia, cor, clube, bairro; a que teve um chefe, profeta, santo ou herói. O belo, na família, é que ela incorpora, une, amalgama – às vezes, algema! O feio: expulsa, afasta, repele, separa, condena.
A epidemia da Globalização, hoje – pior do que a peste Espanhola que matou milhões de pessoas pelo mundo afora, faz cem anos; pior que a cólera e outras pestes que devastaram a Europa na Idade Média; - a globalização infecta a parte maior da Humanidade e a divide em três grandes famílias: primeira, a daqueles que controlam o Mercado; segunda, a dos que nele estão inseridos; terceira, infeliz, que reza nos corredores da morte do desemprego e da fome: esta é a Humanidade descartável, vítima do moderno Holocausto. Esta Família Econômica se sobrepõe à
raça, ao credo e à cor, ao tempo e ao espaço. Seus vínculos sanguíneos são as ações das multinacionais; seu coração é a Bolsa.
Eu quis falar destas três Humanidades e desta pena: para que exista família, é necessária a exclusão; necessário expulsar aqueles que a ela não pertencem. E a mesma violência, necessária para excluir os outros, pode se voltar contra os próprios membros da mesma família!
Falei metaforicamente.
Augusto Boal
Rio de Janeiro, Fevereiro 2004
A PAIXÃO E A ARTE
[…] A arte pode ser entendida de muitas maneiras. Eu prefiro dizer que a Arte, qualquer arte, é sempre um conjunto de sistemas sensoriais que permitem aos seres humanos – e só a eles! – fazer representações do real!
[…] Mesmo os primeiros pintores rupestres que, nos tetos de suas cavernas, pintavam bisontes, leões e outros animais, mesmo eles sabiam que uma coisa é o real e outra, diferente, sua representação pictórica: sem medo, o pintor cavernícola se aproximava do chifre e do dente da fera, quando pintada, mas fugia assustado do seu modelo, solto no descampado.
As artes são representações do real, não são o real: mas, que real é este que elas representam? Existem artes, como a pintura, que organizam a forma e a cor, no espaço. E existem artes, como o teatro, que organizam ações humanas, no espaço e no tempo.
Se nisto consiste a Arte – na organização e na representação do real – e se o teatro representa ações humanas, quais destas ações serão dignas da representação teatral?
Evidentemente, só aquelas nas quais os seres humanos revelam suas paixões. Lope de Vega, escritor espanhol do Século de Ouro, costumava dizer que o essencial ao teatro são dois atores, um tablado e… uma paixão.
Mas… o que é a Paixão? A Paixão, como a Arte, pode ser definida de muitas maneiras; eu prefiro dizer que a paixão é cada um dos sentimentos extremos dos quais o ser humano é capaz. O amor e o ódio, a busca de um ideal e a solidariedade fraterna, a curiosidade científica e a realização esportiva podem ser paixões, se forem extremos. O artista, quando o é de verdade, é um apaixonado.
É preciso reabilitar a Paixão, restaurar seu sentido primeiro de força vital, danificado pela semântica que faz da palavra grega pathos a origem de paixão e patologia.
Paixão não é sofrimento, não é doença: é vida! A Paixão de Cristo não foram doze quedas, percalços no caminho do Calvário: Paixão era a sua determinação em realizar o desejo do Pai e salvar o ser humano do pecado original.
Quem vos fala não é um religioso: é um apaixonado! Sou um homem apaixonado pelas paixões, e juro que não são elas que causam meu sofrimento: são os obstáculos que entre mim e elas são erguidos.
Não é a paixão de Romeu e Julieta que os faz sofrer e lhes traz a morte: é o ódio voraz entre Montequios e Capuletos, suas famílias latifundiárias, seus sequazes e capangas, que lutam por mais terra e mais poder. O obstáculo faz sofrer: a paixão vivifica! Foi a paixão de Che Guevara que o levou à felicidade cubana; foram os obstáculos imperialistas que o levaram à morte boliviana. Foi a paixão do Tiradentes que o levou à Inconfidência Mineira; foi D.Maria, a Louca, que o levou à forca!
A paixão faz sofrer, é certo; não, porém, porque seja paixão, mas por ser libertária!
O ser humano, na sua luta inclemente contra a Natureza, luta pela sobrevivência e pelo gozo, pelo seu legítimo desejo de fruir a vida, que é tão fugaz – desejo que é nosso direito e dever!
Augusto Boal
in O Teatro como Arte Marcial
QUEM É AUGUSTO BOAL
Augusto Boal nasceu no Rio de Janeiro em 1931, estudou na School of Dramatic Arts da Universidade de Columbia nos Estados Unidos da América. Foi um dos fundadores do Teatro Arena de S. Paulo, experiência marcante para a Arte Teatral.
Em Fevereiro de 1971, Augusto Boal é preso, torturado e exilado. Passando a residir na Argentina, de 1971-1976, dirige o grupo “El Machete” de Buenos Aires e monta, de sua autoria, “O Grande Acordo Internacional do Tio Patinhas”, “Torquemada” (sobre a tortura no Brasil) e “Revolução na América do Sul”, iniciando intensas viagens por toda a América Latina, onde começa a desenvolver novas técnicas do “Teatro do Oprimido”: Teatro-Imagem, Teatro-Invisível e Teatro-Fórum.
Em 1976 muda-se para Lisboa, onde dirige o grupo “A Barraca”. Dois anos depois é convidado para lecionar na Université de la Sorbonne-Nouvelle. Em Paris, cria o Centre du Théatre de l´Opprimé-Augusto Boal, em 1979.
A convite do então Secretário de Educação do Estado do Rio de Janeiro, professor Darcy Ribeiro, Boal volta ao Brasil em 1986 para dirigir a FÁBRICA DE TEATRO POPULAR. O objetivo era tornar a linguagem teatral acessível a todos, como estímulo ao diálogo e à transformação da realidade social.
Em 1992, candidata-se e é eleito vereador da cidade do Rio de Janeiro pelo PT (Partido dos Trabalhadores), para fazer Teatro-Fórum e, a partir da intervenção dos espectadores, criar projetos de lei: é o Teatro Legislativo.
Sua mais recente pesquisa é a Estética do Oprimido, programa de formação estética que integra experiências com o SOM, PALAVRA, IMAGEM e ÉTICA. A Estética do Oprimido tem por fundamento a crença de que somos todos melhores do que pensamos ser, e capazes de fazer mais do que aquilo que efetivamente realizamos: todo ser humano é expansivo
FICHA ARTÍSTICA
Texto de Augusto Boal
Adaptação do Texto e Encenação: Helder Costa
Direcção Plástica: Maria do Céu Guerra
Adereços: Cecília Sousa, Luís Thomar
Assistência de Encenação: Susana Costa
Luminotecnia: Fernando Belo
Sonoplastia: Rui Mamede
Montagem: Mário Dias
Costureira: Inna Siryk
Apoio Técnico: José Carlos Pontes
Relações Públicas e Produção: Elsa Lourenço
Secretariado: Maria Navarro
Cartaz: Elsa Lourenço, José Carlos Pontes e Rita Lello,
Fotografias: Movimento de Expressão Fotográfica
Elenco por ordem de entrada em cena:
MARIA DO CÉU GUERRA - Maria Luiza
RITA FERNANDES - Maria Pia
SÉRGIO MORAS - Luiz António
PEDRO BORGES - Luiz Octávio
JOÃO D’ÁVILA - Esmeraldina
RUBEN GARCIA - Luiz Eugénio
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