Teatro da Rainha alerta para precariedade numa arte que não vive sem público



Afastada do palco pela crise pandémica, o Teatro da Rainha alerta para a precariedade que afecta as companhias de teatro e a necessidade de repensar o modelo de financiamento de uma arte que não existe sem público.
“Sem o trabalho de palco” uma companhia de teatro é como “um peixe sem água para viver”, disse à agência Lusa o encenador do Teatro da Rainha, Fernando Mora Ramos, considerando “a adaptação à cultura ‘online’ uma falsa solução”.
“Não existe teatro ‘online’, não há adaptação possível”, vincou o encenador da companhia das Caldas da Rainha sublinhando que o teatro “vive da comunidade e faz-se em presença desta”, sendo uma arte que “necessita desse espaço de socialização em assembleia”.
Longe dos palcos devido às medidas de isolamento social, a companhia enfrenta a crise da Covid-19 usando “o arquivo para falar do que foi feito e do que está em projecto”, numa exposição comemorativa dos 35 anos do Teatro da Rainha.
No ‘site’ e nas redes da companhia vão sendo revelados compositores e bandas sonoras, material fotográfico e os trabalhos de som e desenho sonoro ligadas ao trabalho desenvolvido nas últimas três décadas.
O teatro não pode ser feito “em tele-trabalho” e afastada do palco e do público a companhia enfrenta “os problemas de uma economia específica”, de quem conta com jovens actores contratados para determinadas produções.
“Não poderemos deixar de lhes pagar o que lhes devemos, seria injusto e ignóbil”, afirmou Mora Ramos, apesar de “a próxima produção já não se realizar nas datas, o que implica mais meses de salário”, sem se saber sequer se o espectáculo se chegará a realizar.
“Onde ir buscar esse dinheiro?” é a questão que se coloca à companhia preocupada com actores que “vivem com muito pouco desde há muito”, com salários entre os 700 euros e os 900 euros.
“Se mesmo esse pouco não acontece, de que vivem as pessoas?”, insiste, dado o cancelamento de espectáculos e acolhimentos deitar por terra a planificação de receitas e despesas.
Com um futuro menos incerto, a equipa residente - sete pessoas - terá os ordenados assegurados “enquanto a DGArtes mantiver o compromisso contratual e forem realizados os agendamentos necessários”.
O problema coloca-se ao nível dos projectos especiais, com fontes de financiamento específicas, como sejam os apoios da autarquia.
“Se o espectáculo de verão, no parque, não tiver modo de se fazer, além do enorme prejuízo artístico e comunitário, de dinâmica de públicos construída durante décadas, de serviço público teatral, teremos um buraco de dinheiros que se reflectirá também na nossa estrutura residente”, exemplifica o encenador.
Segundo Mora Ramos, a crise pandémica faz desta “uma altura ideal para repensar” o financiamento da produção teatral e de Portugal ser um “exemplo para a Europa” para que outra qualquer crise “não volte a encontrar um meio profissional vasto em que a maior parte é precária” com mais de 90% dos artistas “sem contratos de longo prazo e com salários baixos”.
No Teatro da Rainha, exemplifica, “há há quinze anos o mesmo leque salarial (entre 650 e 1.000 euros) para pessoas que têm todas formações superiores, e mesmo de topo, nas suas áreas”.
Por isso defende a criação de “um Serviço Nacional das Artes da Presença”, como o Serviço Nacional de Saúde, que permita aos profissionais “trabalhar em estruturas residentes, apoiadas pelo Estado, autarquias e instâncias de poder regionais”.
Um modelo que Mora Ramos acredita que “acabaria com injustas assimetrias e serviria lógicas artísticas, servindo os artistas e o povo espectador”, num país que “necessita de teatro com expressão nacional nas regiões, de orquestras, e de equipamentos de programação artística e cultural qualificados ao mais alto nível”.
Convicto de que há gente para levar a tarefa a bom porto, Mora Ramos acredita ser “boa altura para uma volta integral nisto tudo”, para assegurar “a saúde espiritual e crítica dos portugueses que necessita também de ser imunizada pela possibilidade constante de fruir objectos artísticos de alto nível sem finalidades comerciais”.
Até lá, a companhia, em recolhimento, mantém a programação sujeita à calendarização que for possível depois de levantamento do estado de emergência e vai mandando recado “aos poderes, sobretudo o central, que nem tudo se resolve em plataformas e de modo policial-contabilístico”.
É preciso “pensar na democracia” sem a qual “não dá para fazer teatro”. Se “não se aprofunda regride”, com o risco de o teatro de voltar, como em tempo idos, “à clandestinidade”, rematou o encenador.
in Diário de Leiria

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