Conversas e memórias com Teatro dentro # - Senhora Dona Eunice por Fernando Louro

Eunice fotografada por João Silveira Ramos

Poder usufruir deste espaço para conversar convosco sobre Teatro, traz-me a responsabilidade de saber conversar bem e muito principalmente, saber de quem... ...e sei tão bem de quem vos quero falar. Só não sei, se serei ou não, capaz de trazer até este espaço, o profundo respeito e o muito apreço de quem tanto admiro e sempre aplaudi com o coração a transbordar de emoção.
Sem perda de tempo, que suba o pano, que se ilumine o palco e entre em cena EUNICE MUÑOZ a grande actriz portuguesa que amo (sim, que amo) desde que amo o Teatro. Aqui para nós, acho mesmo que foi Eunice quem me “ensinou” a gostar tanto de Teatro.
Como muitos que a admiram e veneram, quanto lhe estou grato por tantos trabalhos extraordinários e não raras vezes à beira do sublime.
Primeiro, foi essa voz única e envolvente carregada de emoção em cada palavra. As palavras na voz de Eunice, parecem sempre palavras novas. Eu sou do tempo em que a Rádio me trazia “Teatros das Comédias” e Folhetins adaptados de grandes obras literárias. Os grandes actores e actrizes do nosso Teatro eram responsáveis por nos fazer vibrar e emocionar com as suas interpretações através das ondas radiofónicas. Todo o resto ficava por conta da nossa modesta condição de ouvintes. Imaginar, era preciso. Eram as vozes que nos moldavam o rosto de quem ouvíamos. Havia muitas vozes inconfundíveis, mas a de Eunice tornou-se-me para mim, a voz de alguém muito especial e querida, que eu sonhava ver representar. Ver Eunice em palco era o meu desejo, mas Lisboa nessa altura para mim ficava longe... 
A Televisão, entretanto “nascida” para nosso espanto e contentamento, fez esse milagre. Em Novembro de 1962 vi Eunice a interpretar “A Dama das Camélias” ao lado de Ruy de Carvalho. Finalmente a Voz passou a ter um rosto. Um deslumbramento para o jovem espectador que eu era – um amor à primeira vista - para quem só a “conhecia” através da magia da Rádio.

"O Milagre de Ana Sulivan" no Teatro Avenida 1963

Chegou Fevereiro de 1963 e Eunice preparava-se para estrear em Lisboa no Teatro Avenida a peça “O Milagre de Ana Sullivan” do dramaturgo William Gibson com encenação de Luis Sttau Monteiro ao lado de uma jovem actriz - Guida Maria - que viria a ter um enorme sucesso e tornar-se uma grande revelação. Um êxito enorme para as duas actrizes. Não podia ter tido melhor peça para eu ver pela primeira vez em palco a minha actriz preferida. Emocionante e inesquecível. Ao longo da minha vida poucas vezes me lembro de ter assistido a tantos e prolongados aplausos.Eram intermináveis.
Emocionantes. Se alguém que me lê fôr desse tempo e pôde ver esta peça, sabe que são verdadeiras estas palavras. Foram meses e meses em cena, curiosamente, no mesmo palco onde Eunice em 1956 já tivera um dos maiores sucessos da sua carreira com a peça “Joana D’Arc” de Jean Anouilh.
Foi assim o meu primeiro “encontro” com Eunice Muñoz.
Depois, durante anos e anos vi-a numa constante presença em vários palcos de Lisboa. Tentava não perder cada trabalho e cada peça. Foram muitas e muitas as noites de puro prazer a ver representar tão genial Actriz. 
Infelizmente, o Cinema Português chamou-a poucas vezes. Foi preciso esperar até 1980 que o realizador Lauro António a chamasse para fazer “Manhã Submersa”, um belo filme com argumento adaptado do romance de Virgílio Ferreira. No desempenho de “Dona Estefânia”. Eunice tem uma interpretação soberba e inesquecível.

Eunice Muñoz em "Manhã Submersa", de Lauro António (1980)
                                                
Imparável, Eunice conseguiu quase sempre ser sinónimo de Teatro com qualidade. Várias Companhias de Teatro foram aparecendo no seu caminho. No recém nascido Teatro Experimental de Cascais faz “Fedra” de Racine ao lado de Amélia Rey Colaço com encenação de Carlos Avilez em 1967. 
De seguida, firma-se no Teatro Villaret em finais da década de 60 e encabeça a Companhia Portuguesa de Comediantes onde só tem grandes e belos trabalhos. “O Homem que fazia chover”, “As Raposas”, “António Marinheiro, o Édipo de Alfama”, “Jangada”, “Verão e Fumo” são disso exemplos. 
Falar de uma actriz com uma carreira tão brilhante e com tantas interpretações marcantes para o Teatro Português, é tarefa difícil e ardilosa para poder caber neste espaço. Sem dúvida uma carreira intensa, excelente e luminosa.

Eunice e Glicinia Quartin em "As Criadas", encenação de Victor Garcia no TEC (1972)

Imperdoável seria porém, não nomear aqui com mais destaque, um dos espectáculos mais extraordinários que se fizeram em Portugal. Estávamos nos inícios da década de 70 e Carlos Avilez convida o encenador Victor Garcia para encenar “AS CRIADAS” de Jean Genet. Encenação vanguardista e magistral com 3 actrizes em “estado de graça”- Lurdes Norberto, Glicínia Quartin e Eunice eram sublimes. Um espectáculo inovador. Tão arrojado, que a Censura nem “deixou” que fosse representado em Lisboa. Uma obra de arte na memória do Teatro Português.
Ao correr dos anos, muitos e bons trabalhos foram acontecendo na sua caminhada imparável por tantos palcos.
Que dizer de “O Duelo”, “Felizmente há Luar”, “A Casa de Bernarda Alba”, “Gim Game”, “A Maçon”, “As memórias de Sarah Bernhardt”, “A Dúvida”, “Zerlina”, “A Casa do Lago”, “O Comboio da Madrugada” e tantas, tantas mais interpretações belas e inesquecíveis?
Como seria de esperar e óbvio, termino esta modesta e despretensiosa homenagem a tão grande Mulher e Actriz, recordando um comovente e avassalador trabalho que ficará marcado na História do nosso Teatro, como se costuma dizer, a letras de ouro – “Mãe Coragem e os seus Filhos” de Bertolt
Brecht e Encenação de João Lourenço no Teatro Nacional Dona Maria II em 1986. Um autêntico deslumbramento na Arte de Representar. Mãe Eunice ou Eunice Coragem? Quem viu, sabe e percebe do que falo. 

"Mãe Coragem e os Seus Filho", enc. João Lourenço no Teatro Nac. D. Maria II (1986)

Grato pelas muitas dezenas de trabalhos extraordinários que lhe vi fazer, deixo-vos com estas palavras da própria actriz: “Tal como meu pai, também tenho esse lado de não ir para baixo... Esse lado de ir para cima é que me interessou sempre. E acima de tudo, amar a Vida”.
Obrigado Dona Eunice. Um imenso e sincero aplauso.

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