"VULCÃO"
26 Nov. a 20 Dez. 4ª a Sáb. 21h45 Dom. 16h15
na Sala Estúdio
26 Nov. a 20 Dez. 4ª a Sáb. 21h45 Dom. 16h15
na Sala Estúdio
de Abel Neves
encenação João Grosso
cenografia Rui Alexandre
figurinos Dino Alves
desenho de luz José Nuno Lima
sonoplastia Luís Aly
com Custódia Gallego
assistente de encenação Catarina Bernardo
direcção de cena Manuel Guicho
operador de som Pedro Costa
operador de luz Daniel Varela
co-produção TNDM II e ACE / Teatro do Bolhão
M/16
duração 1H35 (sem intervalo)
O espectáculo
Submissa quanto pode, e deve ser, Valdete vive os seus dias nas garras de um monstro, o seu marido Samuel. Antes de casar, sonhou com ele um amor feliz, mas depois o nascimento de um filho cego revela a natureza bizarra do seu homem. Obcecado com a ideia do extermínio, de acabar com os fracos, Samuel recolhe todos os cães que encontra e atira-os à morte, construindo perto da casa um poço semelhante ao dos antigos fojos de lobo. Uma noite, entrega o seu pequeno filho à máfia do tráfico de órgãos e, muito provavelmente também, à morte.
Prisioneira na sua própria casa, algemada, Valdete resiste ao martírio, à violação e, sempre na esperança de poder saber onde está o seu querido filho, aceita continuar a vida junto do homem que odeia. Até que ele, alcoolizado, sofre um ataque...
Vulcão não existe A génese de “Vulcão” está numa conversa que a Custódia Gallego teve comigo num dia de Maio há já uns anos. Perguntou-me então, simplesmente, se eu gostaria de lhe escrever um texto para o teatro, um monólogo. Sei que lhe disse que prefiro o diálogo e recordo-me que me disse que também ela prefere o diálogo. Estávamos, por isso, bem esclarecidos. A verdade é que todos nós praticamos a arte do monólogo, uns mais do que outros, mais em murmúrio uns do que outros, uns mais capazes de se fazerem ouvir, muitos irremediavelmente perdidos no enigma deste mundo. Valdete, a personagem que acabou por revelar-se nos primeiros passos de “Vulcão”, não tem uma vida feliz mas, apesar da infelicidade, está determinada a conquistar um apaziguamento que lhe permita reconquistar o seu supremo bem: um filho perdido. A crer nas suas palavras, irá consegui-lo e talvez seja bom estarmos simpáticos com quem não desiste de encontrar justiça, talvez até uma espécie de céu na terra, mas cada um saberá de si no que diz respeito também aos outros. E humanidade não falta por aí. “Vulcão” não é mais do que uma história que nunca existiu, mas que a fascinante disponibilidade de corpo e espírito de uma actriz consegue trazer ao palco para que possamos, talvez, não só restaurar - e para melhor - as arruinadas vidas de muitos como precaver-nos - em muitos casos também - contra os malefícios de algumas acções e que, afinal, até têm bom remédio. Não é que o teatro faça milagres, porque não os faz, mas ajuda a pensar outras vidas, possíveis e melhores, e a clarear horizontes. Nós, os que com o público andamos no teatro, ainda vamos acreditando nisso.
encenação João Grosso
cenografia Rui Alexandre
figurinos Dino Alves
desenho de luz José Nuno Lima
sonoplastia Luís Aly
com Custódia Gallego
assistente de encenação Catarina Bernardo
direcção de cena Manuel Guicho
operador de som Pedro Costa
operador de luz Daniel Varela
co-produção TNDM II e ACE / Teatro do Bolhão
M/16
duração 1H35 (sem intervalo)
O espectáculo
Submissa quanto pode, e deve ser, Valdete vive os seus dias nas garras de um monstro, o seu marido Samuel. Antes de casar, sonhou com ele um amor feliz, mas depois o nascimento de um filho cego revela a natureza bizarra do seu homem. Obcecado com a ideia do extermínio, de acabar com os fracos, Samuel recolhe todos os cães que encontra e atira-os à morte, construindo perto da casa um poço semelhante ao dos antigos fojos de lobo. Uma noite, entrega o seu pequeno filho à máfia do tráfico de órgãos e, muito provavelmente também, à morte.
Prisioneira na sua própria casa, algemada, Valdete resiste ao martírio, à violação e, sempre na esperança de poder saber onde está o seu querido filho, aceita continuar a vida junto do homem que odeia. Até que ele, alcoolizado, sofre um ataque...
Vulcão não existe A génese de “Vulcão” está numa conversa que a Custódia Gallego teve comigo num dia de Maio há já uns anos. Perguntou-me então, simplesmente, se eu gostaria de lhe escrever um texto para o teatro, um monólogo. Sei que lhe disse que prefiro o diálogo e recordo-me que me disse que também ela prefere o diálogo. Estávamos, por isso, bem esclarecidos. A verdade é que todos nós praticamos a arte do monólogo, uns mais do que outros, mais em murmúrio uns do que outros, uns mais capazes de se fazerem ouvir, muitos irremediavelmente perdidos no enigma deste mundo. Valdete, a personagem que acabou por revelar-se nos primeiros passos de “Vulcão”, não tem uma vida feliz mas, apesar da infelicidade, está determinada a conquistar um apaziguamento que lhe permita reconquistar o seu supremo bem: um filho perdido. A crer nas suas palavras, irá consegui-lo e talvez seja bom estarmos simpáticos com quem não desiste de encontrar justiça, talvez até uma espécie de céu na terra, mas cada um saberá de si no que diz respeito também aos outros. E humanidade não falta por aí. “Vulcão” não é mais do que uma história que nunca existiu, mas que a fascinante disponibilidade de corpo e espírito de uma actriz consegue trazer ao palco para que possamos, talvez, não só restaurar - e para melhor - as arruinadas vidas de muitos como precaver-nos - em muitos casos também - contra os malefícios de algumas acções e que, afinal, até têm bom remédio. Não é que o teatro faça milagres, porque não os faz, mas ajuda a pensar outras vidas, possíveis e melhores, e a clarear horizontes. Nós, os que com o público andamos no teatro, ainda vamos acreditando nisso.
Abel Neves
A Humanidade consegue viver sem violência? A Humanidade pode ser feliz?
Talvez a felicidade seja possível. Talvez dependa do modo como nos posicionamos no contexto em que vivemos, do modo como somos reconhecidos pelos outros e de como nos aceitamos e nos pensamos a nós próprios.
Mas quando a intervenção de terceiros se sobrepõe à nossa vontade, quando menosprezam os traços pessoais a que damos valor em nós mesmos, e pelos quais buscamos que os outros nos valorizem: o nosso carácter, como escreveu Richard Sennett, então passamos a ser oprimidos, a tristeza instala-se e a queda toma conta de nós.
Assim é com Valdete. Mulher de forte carácter que se submeteu anos a fio ao homem que veio a revelar-se progressivamente um psicopata: Samuel, o marido.
E enquanto o dono/marido sem hesitações, sem angústias, sem respeito pelos outros, com um ódio generalizado e uma raiva patológica, numa evolução clínica negativa linear, tem o objectivo funesto de exterminar os Diferentes, Valdete despersonaliza-se, complexifica-se, tem sentimentos de divisão — quer/não quer, gosta/não gosta, apoia-se na ideia de que o filho vive algures para suportar a violência do presente.
Para sobreviver terá a vítima que exterminar o exterminador?
Valdete não está bem ficando, mas também não consegue partir. Limitada ao comportamento padrão da vítima de relação violenta, a sua única possibilidade de salvação é destruir o objecto da violência assumindo, assim, o papel violento. Tornando-se, em alguma medida, numa exterminadora.
No espaço flutuante da complexa brancura da memória, agora ou a "um milhão de anos-luz", apoiada numa grelha de gestos e acções de uma quotidianidade banal, Valdete é uma sombra, vive como que fora da vida, como se não existisse. Porventura como as sombras de Mark Rothko: sem associação directa com nenhuma experiência visível particular, mas nela se reconhecendo o princípio e a paixão dos organismos.
João Grosso
Abel Neves. Carpinteiro de versos para dizer
“Abel Neves persegue a tensão conflitual do mito, procura desocultar a sua poética, tentação de um teatro que aspira a horizontes mais largos, a viagens menos efémeras”, escrevia Carlos Porto, a propósito de “Anákis”, texto distinguido com uma menção honrosa pelo júri do Prémio de Teatro organizado pela S.P.A., em 1985. O comentário crítico de Porto abarcava ainda o imaginário dos textos “Amadis” (1985), “Touro” (1986) e a dramaturgia de “Serena Guerrilha” (1981). Eram os anos de uma vida criativa partilhada com a Comuna – Teatro de Pesquisa, colectivo com o qual se estreou como actor e com o qual estabeleceu uma relação de electiva intimidade. Os doze anos de trabalho regular na Comuna afinaram a mestria de escrita de um poeta (“Colheira do repouso”, 1982; “Eis o amor a fome e a morte”, 1998, entre outros títulos) no sentido de o tornarem um hábil carpinteiro de diálogos e de situações teatrais, ainda que com uma mão, obstinada e voluntariamente, nas estrelas, ou seja, na poesia. Desta vida e obra em conjunto resultaram, além dos textos acima referidos, a peça “Terra” (1991) e outros textos escritos em parceria como “Não fui eu… foram eles” (1982), “Pó de palco” (1985), “Festa Medieval” (1985) ou “Farsa você mesmo” (1987). Resultou também a sua participação como dramaturgista ou como actor em outros tantos espectáculos1. Mas terá resultado sobretudo na consolidação de um prolífero dramaturgo, conhecedor dos “zigues-zagues” da cena e da especificidade da palavra dita em palco. Deste período, nascerão textos que, não abdicando de uma explícita matriz poética, dialogavam quer com o Portugal semi-rural-semi-urbano da década de oitenta, quer com o projecto teatral da Comuna: de interrogação – muitas vezes paródica e derrogatória – da sociedade portuguesa e da própria natureza da experiência teatral, que se queria viva, colectiva e actuante.
Em 1996, Abel Neves iniciará novo ciclo, desta vez instigado por Graeme Pulleyn que o desafia para escrever um texto sobre lobos para o Teatro Regional da Serra de Montemuro (TRSM). Daí resultará “Lobo/Wolf”, em colaboração com Thérèse Collins (1996), trabalho que contribuirá decisivamente para a afirmação deste grupo no panorama artístico nacional. Seguir-se-ão “El Gringo” (1996), “Fénix e Kota Kota” (2000), “A caminho do Oeste” (2002), “Qaribó” (2006), “Ubelhas, mutantes e transumantes” (2006, também com o GICC- Teatro das Beiras). Com o TRSM, projecto de colorido único na cena portuguesa – onde se alia a experimentação artística a uma prática próxima da cultura popular, apostando fortemente na criação de textos originais com inspiração local – Abel Neves estrear-se-á também na encenação com “Deixem-me ressonar”, de Thérèse Collins, uma comédia sobre a velhice, os hospitais e a morte.
Entretanto, as peças de Abel Neves vão ganhando vida autónoma e em 1992 o Grupo de Teatro da Faculdade de Ciências de Lisboa estreia “Amo-te” e o Teatro Experimental de Medicina apresenta “Terra”, em 1999. Nesse mesmo ano, Abel Neves regressa à Comuna com “Inter-Rail”, em encenação de Álvaro Correia; e, no âmbito do Dramat, apresenta-se “Ostras Frescas”, integrando “Sexto sentido”, um espectáculo em torno da figura de Almeida Garrett, resultado de um exercício escrito por António Cabrita, Regina Guimarães, Abel Neves e Francisco Mangas, sob guião do primeiro. Para trás ficava a publicação de “Atlântico”, seguido de “Finisterrae” e de “Arbor Mater” (Cotovia, 1997) textos que com “Terra” compõem a tetralogia – assim denominada pelo autor – “Ciclo Simbólico para o Teatro”. Textos pautados pela elipse, pelo fragmento e por uma aura de mistério onde a Natureza se reveste de uma solene sacralização e que indiciam já alguns dos topos das obras seguintes. Assim, “Além as estrelas são a nossa casa” e “Supernova” (ambos estreados em 2000) – que vão inaugurar mais duas relações privilegiadas com estruturas de produção: A Escola da Noite e o Cendrev – são já peças de maior fôlego, que aliam diálogos breves e ágeis a um ímpeto narrativo e monológico. São obras que reputam o autor como um dos mais representativos nomes da moderna dramaturgia nacional e que, formalmente, habitam um mapa desafiador para a escrita dramática. Com efeito, os seus textos do final da década de noventa e do início do milénio vão-se inscrevendo em lugares muito caros à dramaturgia contemporânea como são os da narrativa derivativa, da pulsão rapsódica ou da tentação lírica.
Assim sendo, poucos autores dramáticos portugueses se poderão inscrever tão assertivamente no mapeamento que um autor como Jean-Pierre Sarrazac faz do drama contemporâneo, apresentando os “princípios característicos da rapsodização do teatro: recusa do “belo animal” aristotélico e escolha da irregularidade; caleidoscópio dos modos dramático, épico e lírico; reviravolta constante do alto e do baixo, do trágico e do cómico; junção de formas teatrais e extrateatrais, formando o mosaico de uma escrita resultante de uma montagem dinâmica; passagem de uma voz narradora e interrogante” (Sarrazac 2002: 230). Toda esta cartografia se pode aplicar à obra de Abel Neves.
“Supernova e Além as estrelas são a nossa casa” são colecções de pequenas histórias, fragmentárias, enigmáticas e poéticas, arrumadas num mosaico de títulos que são versos (“Os naufrágios querem-se longe, no mar”, “Vivem entre plantas e astros. É uma amizade que têm”, da primeira peça; ou “Para um dia pintar o guarda-rios” e “Eu, se não subo ao pessegueiro, morro”, da segunda). Além disso, partilham uma desarmante abordagem lúdica à escrita para teatro.
Escreve o autor: “'Além as estrelas' […] é um conjunto de trinta pequenos textos escritos para o teatro. Acredito que sete ou oito deles, agrupados em ramalhete, sejam suficientes para criar um espectáculo”. Estratégia que, inegavelmente, convida ao jogo teatral. A maior parte dos textos de “Além as estrelas…”, por detrás de narrações mais ou menos líricas, de monólogos introspectivos, de pequenas situações dialogadas, de exaustivas didascálias (e até mesmo de uma “Muito curta metragem com regador”), esconde um sinuoso denominador comum: a subliminar revelação de experiências traumáticas. A violência não é sempre nomeada, mas as narrativas vão revelando agressões físicas e psicológicas, violações e outras brutalidades, sejam elas reais ou imaginadas. E este é um fenómeno que os seus textos mais recentes parecem querer continuar. Em “Este Oeste Éden” (A Escola da Noite, 2009) cria-se um universo situado algures entre Auschwitz e Hollywood, entre “Waiting for Godot” e “The Wizard of Oz”, recriando os mitos fundadores de inspiração Cristã e cruzando-os com os lugares da humanidade contemporânea, com as nossas guerras, com as nossas cidades-império. O resultado é uma parábola intemporal que habita o espaço das emoções distendidas que o teatro do absurdo já habitou. E agora, “Vulcão”, um monólogo onde a reacção de uma mulher acossada pela violência doméstica e quotidiana, pela banalização do horror, nos faz interrogar qual o grau zero da humanidade.
O influente crítico Eric Bentley (1964) sinaliza a figuração da violência como essencial para a experiência dramática: “A violência interessa-nos porque somos violentos” (1991: 8, t.m.), afirma.
“Seria imoral não escrever sobre violência, declara Edward Bond” (2000: 34, t.m.). Mas, em relação a “Vulcão”, talvez seja Slavoj Zizek quem melhor epitomiza o poderoso texto de Abel Neves: “Às vezes, não fazer nada, é a coisa mais violenta que se pode fazer” (2008: 183, t.m.).
Rui Pina Coelho
A Humanidade consegue viver sem violência? A Humanidade pode ser feliz?
Talvez a felicidade seja possível. Talvez dependa do modo como nos posicionamos no contexto em que vivemos, do modo como somos reconhecidos pelos outros e de como nos aceitamos e nos pensamos a nós próprios.
Mas quando a intervenção de terceiros se sobrepõe à nossa vontade, quando menosprezam os traços pessoais a que damos valor em nós mesmos, e pelos quais buscamos que os outros nos valorizem: o nosso carácter, como escreveu Richard Sennett, então passamos a ser oprimidos, a tristeza instala-se e a queda toma conta de nós.
Assim é com Valdete. Mulher de forte carácter que se submeteu anos a fio ao homem que veio a revelar-se progressivamente um psicopata: Samuel, o marido.
E enquanto o dono/marido sem hesitações, sem angústias, sem respeito pelos outros, com um ódio generalizado e uma raiva patológica, numa evolução clínica negativa linear, tem o objectivo funesto de exterminar os Diferentes, Valdete despersonaliza-se, complexifica-se, tem sentimentos de divisão — quer/não quer, gosta/não gosta, apoia-se na ideia de que o filho vive algures para suportar a violência do presente.
Para sobreviver terá a vítima que exterminar o exterminador?
Valdete não está bem ficando, mas também não consegue partir. Limitada ao comportamento padrão da vítima de relação violenta, a sua única possibilidade de salvação é destruir o objecto da violência assumindo, assim, o papel violento. Tornando-se, em alguma medida, numa exterminadora.
No espaço flutuante da complexa brancura da memória, agora ou a "um milhão de anos-luz", apoiada numa grelha de gestos e acções de uma quotidianidade banal, Valdete é uma sombra, vive como que fora da vida, como se não existisse. Porventura como as sombras de Mark Rothko: sem associação directa com nenhuma experiência visível particular, mas nela se reconhecendo o princípio e a paixão dos organismos.
João Grosso
Abel Neves. Carpinteiro de versos para dizer
“Abel Neves persegue a tensão conflitual do mito, procura desocultar a sua poética, tentação de um teatro que aspira a horizontes mais largos, a viagens menos efémeras”, escrevia Carlos Porto, a propósito de “Anákis”, texto distinguido com uma menção honrosa pelo júri do Prémio de Teatro organizado pela S.P.A., em 1985. O comentário crítico de Porto abarcava ainda o imaginário dos textos “Amadis” (1985), “Touro” (1986) e a dramaturgia de “Serena Guerrilha” (1981). Eram os anos de uma vida criativa partilhada com a Comuna – Teatro de Pesquisa, colectivo com o qual se estreou como actor e com o qual estabeleceu uma relação de electiva intimidade. Os doze anos de trabalho regular na Comuna afinaram a mestria de escrita de um poeta (“Colheira do repouso”, 1982; “Eis o amor a fome e a morte”, 1998, entre outros títulos) no sentido de o tornarem um hábil carpinteiro de diálogos e de situações teatrais, ainda que com uma mão, obstinada e voluntariamente, nas estrelas, ou seja, na poesia. Desta vida e obra em conjunto resultaram, além dos textos acima referidos, a peça “Terra” (1991) e outros textos escritos em parceria como “Não fui eu… foram eles” (1982), “Pó de palco” (1985), “Festa Medieval” (1985) ou “Farsa você mesmo” (1987). Resultou também a sua participação como dramaturgista ou como actor em outros tantos espectáculos1. Mas terá resultado sobretudo na consolidação de um prolífero dramaturgo, conhecedor dos “zigues-zagues” da cena e da especificidade da palavra dita em palco. Deste período, nascerão textos que, não abdicando de uma explícita matriz poética, dialogavam quer com o Portugal semi-rural-semi-urbano da década de oitenta, quer com o projecto teatral da Comuna: de interrogação – muitas vezes paródica e derrogatória – da sociedade portuguesa e da própria natureza da experiência teatral, que se queria viva, colectiva e actuante.
Em 1996, Abel Neves iniciará novo ciclo, desta vez instigado por Graeme Pulleyn que o desafia para escrever um texto sobre lobos para o Teatro Regional da Serra de Montemuro (TRSM). Daí resultará “Lobo/Wolf”, em colaboração com Thérèse Collins (1996), trabalho que contribuirá decisivamente para a afirmação deste grupo no panorama artístico nacional. Seguir-se-ão “El Gringo” (1996), “Fénix e Kota Kota” (2000), “A caminho do Oeste” (2002), “Qaribó” (2006), “Ubelhas, mutantes e transumantes” (2006, também com o GICC- Teatro das Beiras). Com o TRSM, projecto de colorido único na cena portuguesa – onde se alia a experimentação artística a uma prática próxima da cultura popular, apostando fortemente na criação de textos originais com inspiração local – Abel Neves estrear-se-á também na encenação com “Deixem-me ressonar”, de Thérèse Collins, uma comédia sobre a velhice, os hospitais e a morte.
Entretanto, as peças de Abel Neves vão ganhando vida autónoma e em 1992 o Grupo de Teatro da Faculdade de Ciências de Lisboa estreia “Amo-te” e o Teatro Experimental de Medicina apresenta “Terra”, em 1999. Nesse mesmo ano, Abel Neves regressa à Comuna com “Inter-Rail”, em encenação de Álvaro Correia; e, no âmbito do Dramat, apresenta-se “Ostras Frescas”, integrando “Sexto sentido”, um espectáculo em torno da figura de Almeida Garrett, resultado de um exercício escrito por António Cabrita, Regina Guimarães, Abel Neves e Francisco Mangas, sob guião do primeiro. Para trás ficava a publicação de “Atlântico”, seguido de “Finisterrae” e de “Arbor Mater” (Cotovia, 1997) textos que com “Terra” compõem a tetralogia – assim denominada pelo autor – “Ciclo Simbólico para o Teatro”. Textos pautados pela elipse, pelo fragmento e por uma aura de mistério onde a Natureza se reveste de uma solene sacralização e que indiciam já alguns dos topos das obras seguintes. Assim, “Além as estrelas são a nossa casa” e “Supernova” (ambos estreados em 2000) – que vão inaugurar mais duas relações privilegiadas com estruturas de produção: A Escola da Noite e o Cendrev – são já peças de maior fôlego, que aliam diálogos breves e ágeis a um ímpeto narrativo e monológico. São obras que reputam o autor como um dos mais representativos nomes da moderna dramaturgia nacional e que, formalmente, habitam um mapa desafiador para a escrita dramática. Com efeito, os seus textos do final da década de noventa e do início do milénio vão-se inscrevendo em lugares muito caros à dramaturgia contemporânea como são os da narrativa derivativa, da pulsão rapsódica ou da tentação lírica.
Assim sendo, poucos autores dramáticos portugueses se poderão inscrever tão assertivamente no mapeamento que um autor como Jean-Pierre Sarrazac faz do drama contemporâneo, apresentando os “princípios característicos da rapsodização do teatro: recusa do “belo animal” aristotélico e escolha da irregularidade; caleidoscópio dos modos dramático, épico e lírico; reviravolta constante do alto e do baixo, do trágico e do cómico; junção de formas teatrais e extrateatrais, formando o mosaico de uma escrita resultante de uma montagem dinâmica; passagem de uma voz narradora e interrogante” (Sarrazac 2002: 230). Toda esta cartografia se pode aplicar à obra de Abel Neves.
“Supernova e Além as estrelas são a nossa casa” são colecções de pequenas histórias, fragmentárias, enigmáticas e poéticas, arrumadas num mosaico de títulos que são versos (“Os naufrágios querem-se longe, no mar”, “Vivem entre plantas e astros. É uma amizade que têm”, da primeira peça; ou “Para um dia pintar o guarda-rios” e “Eu, se não subo ao pessegueiro, morro”, da segunda). Além disso, partilham uma desarmante abordagem lúdica à escrita para teatro.
Escreve o autor: “'Além as estrelas' […] é um conjunto de trinta pequenos textos escritos para o teatro. Acredito que sete ou oito deles, agrupados em ramalhete, sejam suficientes para criar um espectáculo”. Estratégia que, inegavelmente, convida ao jogo teatral. A maior parte dos textos de “Além as estrelas…”, por detrás de narrações mais ou menos líricas, de monólogos introspectivos, de pequenas situações dialogadas, de exaustivas didascálias (e até mesmo de uma “Muito curta metragem com regador”), esconde um sinuoso denominador comum: a subliminar revelação de experiências traumáticas. A violência não é sempre nomeada, mas as narrativas vão revelando agressões físicas e psicológicas, violações e outras brutalidades, sejam elas reais ou imaginadas. E este é um fenómeno que os seus textos mais recentes parecem querer continuar. Em “Este Oeste Éden” (A Escola da Noite, 2009) cria-se um universo situado algures entre Auschwitz e Hollywood, entre “Waiting for Godot” e “The Wizard of Oz”, recriando os mitos fundadores de inspiração Cristã e cruzando-os com os lugares da humanidade contemporânea, com as nossas guerras, com as nossas cidades-império. O resultado é uma parábola intemporal que habita o espaço das emoções distendidas que o teatro do absurdo já habitou. E agora, “Vulcão”, um monólogo onde a reacção de uma mulher acossada pela violência doméstica e quotidiana, pela banalização do horror, nos faz interrogar qual o grau zero da humanidade.
O influente crítico Eric Bentley (1964) sinaliza a figuração da violência como essencial para a experiência dramática: “A violência interessa-nos porque somos violentos” (1991: 8, t.m.), afirma.
“Seria imoral não escrever sobre violência, declara Edward Bond” (2000: 34, t.m.). Mas, em relação a “Vulcão”, talvez seja Slavoj Zizek quem melhor epitomiza o poderoso texto de Abel Neves: “Às vezes, não fazer nada, é a coisa mais violenta que se pode fazer” (2008: 183, t.m.).
Rui Pina Coelho
Referências bibliográficas
Bentley, Eric, “The Life of The Drama”. New York: First Applause Printing, 1991 (1964).
Bond, Edward, “Selections from the Notebooks of Edward Bond (Diaries, Letters and Essays)”, vol.1 (1959-1980). London: Methuen,2000.
SARRAZAC, Jean Pierre (2002), “O futuro do drama”, trad. Alexandra Moreira da Silva, Porto, Campo das Letras (1981).
ZIZEK, Slavoj, Violence. “Six Sideways Reflections”. London: Profile Books, 2008.
CURRICULUM
Abel Neves
Nasceu em Montalegre, em 1956. Tem publicadas obras para teatro, muitas delas representadas, tais como: “Anákis”; “Amadis”; “Touro”; “Medusa”; “Terra”; “Amo-te”; “Atlântico”; “Finisterrae”; “Arbor Mater”; “Lobo-Wolf”; “El Gringo”; “Ostras Frescas”; “Inter-Rail”; “Fénix e KotaKota”; “Além as estrelas são a nossa casa”; “Supernova”; “A Caminho do Oeste”; “Amor Perfeito”; “Qaribó”; “Ubelhas, Mutantes e Transumantes”; “Provavelmente uma pessoa”; “Querido Che”; “Nunca estive em Bagdad”; “Este Oeste Éden”; “A Mãe e o Urso”; “Vulcão” e “O paraíso à espera”. Publicou ainda o livro de poesia “Eis o Amor a Fome e a Morte” e os romances “Corações piegas”, “Asas para que vos quero”, “Sentimental”, “Centauros - imagens são enigmas”, “Precioso”, “Cornos da Fonte Fria”. “Algures entre a resposta e a interrogação” é o seu livro de reflexões em volta do teatro. Tem obras traduzidas, publicadas, lidas e representadas na Alemanha, Bélgica, Brasil, Egipto, Escócia, Espanha, França, Luxemburgo, Hungria, Suíça e Roménia. Venceu, recentemente, a III edição do Prémio Luso-Brasileiro de Dramaturgia António José da Silva, atribuído pelo Instituto Camões e pela Funarte – Fundação Nacional de Arte do Ministério da Cultura do Brasil.
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